Em boa hora me chegou às mãos um convite, que agradeço, para assistir a um dos dois concertos que a
“Ronda dos Quatro Caminhos” deu no Garcia de Resende. Com pergaminhos firmados,
e uma história de dezoito anos de carreira, a “Ronda” não deve nada a ninguém. Maturidade
é coisa que lhe não falta e a sonoridade ganhou efectivamente a frescura,
irreverência e simplicidade que só os mestres sabem harmoniosamente conjugar.
Como eles comungo da
opinião que cultura popular e tradicionalismo são características identitárias
do nosso povo, em especial e se, como o fazem, essa cultura é fruto de árduo
trabalho de pesquisa e investigação, que muito devemos a Artur Santos,
Giacometti e Lopes-Graça, o que aliás modestamente admitem no catálogo dos
espectáculos. A modéstia só lhes fica bem, sobretudo se alicerça trabalhos de
qualidade que nada perdem, pelo contrário só têm a ganhar com o valor
acrescentado de reputações sólida e arduamente firmadas.
Ao contrário de muita
música “Pimba”, de que no final deram um exemplo tão irónico quanto mordaz, a
cultura popular nada deve ao populismo consumista, tão vazio de tradição quanto
de significado e que infelizmente tanta aceitação tem entre grande parte da
população portuguesa, de memória por preencher e sentido por perceber.
A inclusão no
espectáculo da colaboração dos “Cantares de Évora”, “Coral de Évora” e do coro
infantil e juvenil do “ Eborae Música”, convidados, deu não só aos temas como a
esses grupos uma riqueza inesperada, como que um colorido inabitual que em
actuações isoladas desses mesmos agrupamentos não é normalmente conseguida.
Se apreensões manifestou a “Ronda” antes do
espectáculo, e tal é visível no texto do catálogo, sosseguem pois, já que
talento lhes sobrou na interpretação das intimidades com que nos brindaram. Por
mim só fico à espera do reencontro, ou para mitigar saudades, do CD a editar.
Até lá festa, pão e vinho, que se não hão-de acabar, como não se acabarão as
noites quentes e namoradeiras deste nosso Alentejo.
Está prisioneira a
“Ronda”, prisioneira de um compromisso que assumiu para com o nosso povo e que
hoje faz parte da sua ementa musical. A culpa será tanto dela quanto nossa,
dela porque prometeu, não desiludiu nem deixou de cumprir, nossa porque
consideraríamos uma afronta aos nossos hábitos educados e às nossas
expectativas, não gozar do som e da palavra a que nos habituou e cujo futuro
deixa antever potencialidades que de modo nenhum desejamos traídas.
Um só caminho
portanto lhes fica aberto, o de continuarem a pensar que a cultura popular e a
música tradicional são parte de nós e não no-la podem subtrair sem azo a crime
de lesa património. A nós cabe cumprir solidariamente no respeito por um
trabalho que nos é dedicado e que preserva tradições dessa língua mãe que muitos
ingratos filhos por vezes olvidam.
Lamenta-se a “Ronda”
que as duas últimas gerações votaram ao ostracismo a nossa cultura popular e as
nossas tradições, não lamentem, é passageiro. Preocupadas que estão na
voracidade do consumismo e facilitismo a que têm sido acostumadas, não têm
tempo para parar e pensar, preferem a música vazia de conteúdos, como preferem hambúrgueres
dispensando mastigação enquanto sonham estar
vivendo a “americam life”.
Tanta cultura alheia
ingerindo, sem digerir, nem tempo têm para pensar, nem querem perdê-lo fazendo-o.
Aguardemos que cresçam, que amadureçam, e quando o emprego faltar, a renda da
casa assustar e o carro não puderem comprar, tomarão a pose do “Pensador”, de
Rodim, e interrogar-se-ão porque mudou o mundo, antes de reconhecerem serem
eles que estão a mudar.
Promova a “Ronda” os
seus espectáculos nos grandes espaços que as cervejeiras dominam, e que hordas
de não pensantes preenchem, extasiados com o trip fenomenal do extasy, dê-lhes
ritmo e toneladas de decibéis, e verá se a juventude aparece ou não. Claro que
os espectáculos perderão o carácter intimista e cúmplice com que agora os
desfrutamos, e não creio que seja isso que a “Ronda” procura, nem ela nem nós,
seus espectadores fiéis e comparsas de uma atitude que durante os seus dezoito
anos de vida não apagou a chama de que se alimenta.
Nota alta para um momento do espectáculo em que foi declamado um poema
para intelectuais, sátira contundente a alguma da nossa realidade. Parabéns nos
Vossos dezoito anos e obrigado.
* by Maria Luísa Baião, escrito no dia 25 / Novembro / 2000 e publicado depois no Diário do Sul, coluna Kota de
Mulher.