quinta-feira, 31 de agosto de 2017

455 - A CUNHA * by Maria Luísa Baião ......................


Quando no início da década de oitenta, na companhia de um casal amigo, visitei pela primeira vez Paris, nunca julguei que uma cidade me deslumbrasse tanto. A cada esquina, em cada rua, Paris dava jus ao nome de cidade luz. Mesmo que muitos o não queiram ou aceitem, é ali o umbigo do mundo. Muitas cidades visitara e visitei depois, nenhuma me causou uma impressão idêntica à dessa cidade linda, na sua pluralidade de surpresas e contrastes.

Em Paris está (in) escrita a história do mundo, nas suas gentes, monumentos, museus e, mais difícil de observar, como odor sentido no ar, a ambiência constante que cada cenário invoca em nós. Guardo religiosamente uma fotografia de um facto aparentemente sem importância, hoje talvez submerso no pulsar da cidade, que mais não é que a memória de um mural gigante, pintado por artista ou artistas indígenas, cônscios do palpitar dessa capital cultural do mundo, a sua cidade. Na faceta lateral de um prédio enorme, posta a descoberto pela demolição do seu vizinho do lado por mor da ampliação de uma praça ajardinada, um mural intitulado “ Il’s on fait le XX siécle “.

Com 30 x 30m, ou mais, surgiam-nos em catadupa as relevantes figuras que nesse século e neste mundo, nele tinham tido alguma preponderância. Cientistas, literatos, astronautas, nobéis, heróis, políticos e gente simples que por feitos extraordinários se distinguira. Não me acudiu à memória qualquer um que tivesse sido esquecido.

Representando Portugal, lá estava Salazar, como Franco, Mussolini, Hitler e Estaline. Não estava Gorbatchov, não chegara ainda o seu tempo, e, se desde então até hoje eu tivesse que acrescentar algum dos nossos, não esqueceria Saramago e Bagão Félix, um comunista excelso, coerente e lúcido, ao lado de um cristão-democrata ilustre, eminente e humanista.

Os franceses celebram o mundo, altruístas, talvez porque realizados, sem complexos etnocêntricos ou patrioteiros, cientes que não será por engrandecerem outros que lhes calhará nódoa na lapela. Nós por cá, denegrimo-nos com um fervor maior que Nelson na célebre batalha de Trafalgar, que lhe deu a vitória mas viria a custar a vida.

Caem ministros, zangam-se ex´s e comadres por causa de cunhas, imaginem, por causa de uma cunha ! Coisa tão banalizada entre nós, com séculos de prática corrente e que um dos ministros, pelo menos ao nível do seu ministério, se preparava para, timidamente, generalizar. Era um bom princípio, partindo dessa generalização meio legalizada, outros, mais corajosos, coerentes e necessitados dessa prática ancestral deveriam aproveitar a oportunidade para institucionalizar a cunha, legalizá-la, democratizá-la, popularizá-la, regulamentá-la, já que, pese embora a sua ancestralidade, não é ainda a Magna Carta.

E, quando por toda a Europa comunitária se luta pela individualidade e especificidade cultural de cada nação, que outra coisa, que não a cunha, nos identificaria mais face a outros povos e culturas?

Um ministro pretendeu brindar outro sem que lho tivessem pedido? Mas que acção fará mais feliz um português que o privilégio de distribuir cunhas à esquerda e à direita mesmo que lhas não peçam ? E que admiração se um outro ou o outro, pediu para a filha uma cunha ? Mas não vive o país todo à espera disso ? Quantas mães de família não rememoram pelo menos uma vez na vida o seu cardápio de conhecimentos e influências ? Não se dirigem ao tio, que é sobrinho do filho de, que por sua vez é amicíssimo de fulano que trabalha com beltrano, o tal que é superior hierárquico de sicrano, precisamente o filantropo a quem a cunha deverá ser finalmente endereçada, devidamente embalada, não esquecendo a garrafinha de Visqui pelo Natal, ou o borrego pela Páscoa ?

Que coisa temos mais genuinamente nossa ? Como resolveríamos nós os nossos excessos burocráticos sem esta maravilha que é a cunha ? Já produziu a física por acaso algo mais simples e eficiente que este mero plano inclinado ? Esta alavanca que move o mundo ? Claro que não ! Haja portanto coragem e coerência. 
    


* Escrita segunda-feira, ‎28‎ de ‎Novembro‎ de ‎2005, ‏‎17:07:22 – publicada no Diário do Sul em … (?)

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

454 - A HERANÇA INESPERADA * by Luísa Baião...


Conhecera-o há mais de vinte anos quando, duas vezes por semana era destacada em serviço para o Centro de Saúde Mental ali aos Canaviais. Ele há muito lá vivia, qualquer perturbação que não recordo nem me lembro de alguém conhecer para ali o atirara, como a tantos outros e outras. Cada um constituía uma personalidade muito própria, muito marcada, com a qual era necessário saber lidar particularmente e por vezes parecia-me só à hora das refeições concertarem ideias. Outras vezes nem nessa ocasião o conseguiam.
  
 Tratei-o e conheci-o durante bastante tempo, não era violento, bem pelo contrário, atencioso por vezes em excesso. Alimentava dois sonhos, que alguém lhe passasse um cheque em branco, coisa que pedia a qualquer um, o outro o de um dia casar comigo, de quem gostava muito.
  
Claro que segura e educadamente sempre lhe fui refreando as ilusões, e penso até que sem o ter alguma vez magoado. Era casada e pronto, ele tinha que ter isso em atenção e esquecer-me, e esqueceu. Esquecia por esse dia, porque no dia seguinte ou na semana seguinte voltava à carga. E eu torneava-lhe a questão sempre do mesmo modo. Nunca houve qualquer problema entre nós, era inofensivo estava medicado e as manias foram posteriormente evoluindo para que lhe oferecesse bonés, que adorava, porta-chaves, bandeiras ou camisolas, fossem de que partido ou clube fossem, coisas que me sobravam e com as quais exultava a tal ponto que se foi esquecendo do casamento, e eu também claro, com tantos doentes para tratar, cada um com a sua singularidade, excentricidade ou fantasia, foi coisa natural.
  
Estive posteriormente muitos anos sem o ver. A minha “comissão” no Centro de Saúde Mental terminara, ou fui substituída, não recordo nem interessa à história verídica, de hoje. Somente volvidos mais de dez ou quinze anos o voltei a encontrar. Uma visita a um Lar de Recolhimento onde parentes meus, gente afastada, estica os dias como tantos outros, e, entre esses muitos outros, ele. Mais velho, mais abatido, mais doente, o que não obstou a que de imediato me tivesse reconhecido, manifestado uma alegria imensa e lembrado as prendas que eu costumava levar-lhe. Foi o reinício de uma série de pedidos que mensalmente lhe satisfiz e nem me custaram praticamente nada. Talvez o mais caro tenha sido um rádio portátil, adquirido no mercado das terças-feiras por uns míseros cinco euros e que mais que isso me veio posteriormente a custar em pilhas, já que invariavelmente se esquecia de o desligar.

 Vi-o envelhecer a olhos vistos e muito rapidamente apesar de bem cuidado e tratado. Se a pessoa não quer, quer parecer-me mesmo que a velhice se acelera, tomando por vezes os contornos de um estado galopante. Devido a razões pessoais estive durante três ou quatro meses sem visitar esse Lar. Quando por fim retomei as visitas fui recebida à chegada com excessiva e inusitada reverência e alguém, muito contrito, lá me disse balbuciante que esse meu amigo havia falecido há umas semanas. Acrescentou pormenores sobre os seus derradeiros dias e horas, tendo-me informado que num grande saco de plástico preto ficara para mim algo que ele fizera questão de apartar antes de se finar, com pedido expresso para que o saco e respectivo conteúdo me viessem a ser entregues. Ali estava o saco, ali estava eu, guardei-o na mala do carro e só em casa o abri. Lá se achavam o rádio, um relógio barato, pilhas consumidas, bonés, camisolas e praticamente todas as lembranças que lhe tinha oferecido desde a primeira hora. No meio de tudo isto uma carta, num muito branco envelope, com o meu nome no exterior, escrito por alguém que não ele pois sabia há muito ter perdido a faculdade da escrita e quase a da fala, embora esta tenha sido recuperada com alguma facilidade desde os seus primeiros tempos de internamento em Évora. Curiosa abri o envelope, dentro dele talvez o que todos os psicólogos e psiquiatras por quem passou ao longo dos anos, e muitos, que o acompanharam, tenham desejado saber. Datada de 1976, escrita em caligrafia muito certinha e bonita, sem que contudo fizesse a mínima menção ao nome de quem quer que fosse, uma carta de amor já amarelada pelo tempo**, talvez nunca enviada mas dirigida a alguém que certamente muito amara e, cujo amor, a julgar pelo conteúdo, nunca fora correspondido.
  
Hoje sei, não só por filmes e romances, como o amor pode ser fulminante ou consumir uma vida inteira. Que mulher teria sido aquela tão amada assim ? Quem teria sido ela ?

Qual a história dele que, no fundo não terá sido nem mais nem menos que um complemento ou prolongamento da vida que vos acabo de contar e cuja parte sei, porque a conheci, tão atribulada, curta e dolorosa foi. Por razões que entenderão não transcreverei essa carta, mas garanto-vos que embora escrita por uma mão masculina, nada fica a dever em magnificência à bela prosa de Florbela Espanca.

O amor, qual potestade, geralmente constrói, mas também pode destruir vidas. Persignei-me e, perturbada, desejei sinceramente paz à sua alma. 

* Nota: Provavelmente este texto foi escrito numa ‎terça-feira, ‎3‎ de ‎Outubro‎ de ‎2006, ‏‎pelas 11:01:36 h

** (não para mim pois em 1976 nem sonhava vir a fazer serviço nesse Centro de Saúde Mental).


quarta-feira, 16 de agosto de 2017

453 - Ó ROSINHA OLHA A SNRa. MARQUESA !!!!







Há uns dias para responder com exactidão a questão que se me deparara e não querendo desiludir um amigo, embrenhei-me nos cartapácios de história tendo a dado momento sido casual e inadvertidamente confrontado com o deslumbramento de Leonor. Expectante estaquei, fiquei ali parado, seduzido, fascinado, encantado, na realidade pasmado, imaginando-me também eu passível de ser acometido e tomado por tais alumbramentos, êxtases, entregas e paixões.

Certamente outros que não os que agora me prendem, seduzem ou conquistam, a variedade de escolhas à disposição seria bem menor, como menor seria o leque de oportunidades ou possibilidades de realização, sobretudo sendo-se mulher (não estou a ser machista ó Mariazinha marquesa de Índigo), como teria sido o caso de Teresa de Ávila (1515 – 1582), a propósito e na sequência de cuja consulta vim a lembrar-me de uma outra mulher de peso, ou contrapeso, Leonor d’Almeida, porque nem crente nem devota, ao invés de Teresa de Ávila, mais conhecida entre nós como Santa Teresa de Jesus, nascida Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, carmelita que viveu o auge do misticismo católico, o mesmo misticismo que mais tarde pesaria à nossa forçada penitente, a boa Leonor de Almeida, de todos conhecida por Marquesa de Alorna, cuja vida daria um filme, um livro já deu, a Rosinha adorará lê-lo de certezinha seja ou não escrito pela Stilwell. Este a que me refiro devemos agradecê-lo à escritora Maria João Lopo de Carvalho que em nada fica atrás da Isabel a não ser no abecedário e no arquivo.

Maria João Lopo de Carvalho trabalhou magistralmente o romantismo e a penitência de que se revestiu a vida da nossa boa D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, que “escrevia poemas à secreta luz da lua enquanto ouvia o espaço incerto das raízes do seu tempo sentindo em si o motim e depois o desconcerto”,* ou seja, uma avalanche de alumbramentos, êxtases, entregas e paixões, enfim, de emoções insatisfeitas cujo sentir plasmou na poesia, mau grado as condições em que escrevia, e sem querer fiz poesia, o que só prova que a respeito de inspiração também eu terei os meus dias…

Teresa de Ávila começou por ser uma noviça carmelita, católica, vindo a acabar os seus dias rodeada de misticismo tendo sido canonizada ainda no século XVI, o século em que viveu, e somente quarenta anos após a morte. Não estarão desligados da sua ascensão aos céus e na hierarquia católica os factos importantíssimos atribuídos à sua actuação durante a Contra Reforma, numa Castela ou Espanha doentiamente católica. Naturalmente foi nesse contexto que obtiveram protecção e divulgação as suas obras sobre a vida contemplativa através da oração mental, nesta época de caça às bruxas, íncubos e mafarricos somente alumbramentos, êxtases, entregas e paixões místicas eram aceites, fenómenos de que os seus leitores eram alvo ou se diziam possuídos. Não havendo cinema, na ausência de internet, faltando-lhes o Facebook, o Twitter e o Instagram que restava à populaça que não o misticismo ? Interessante notar que Miguel Cervantes e o tal D. Quixote de La Mancha viveram por esta época.

O cerne do pensamento místico de Santa Teresa era a ascensão da alma em quatro estágios. O primeiro - "oração mental" o segundo - "oração de silêncio" o terceiro - "devoção de união" e o quarto - "devoção do êxtase ou arrebatamento" Santa Teresa foi uma importante autora da oração mental e detém uma posição entre os autores da teologia mística única. Em todas as suas obras relata as suas próprias experiências e, ajudada por uma profunda perspicácia e capacidade analítica, explica-as de forma claríssima. A sua definição de "oração contemplativa" foi aproveitada pela Igreja Católica que a integrou no Catecismo: "Oração contemplativa, é nada mais que uma partilha íntima entre amigos; significa dedicarmo-nos frequentemente tempo para estar sozinhos ou com quem sabemos que nos ama". Escritas com fins didácticos, as suas obras encontram-se facilmente na literatura mística da Igreja Católica destinadas a difundir a fé e a devoção entre os crentes. Devido à sua actuação na luta desenvolvida pela Contra Reforma foi-lhe dada a oportunidade de reformar profundamente a Ordem Carmelita sendo considerada co-fundadora da nova Ordem dos Carmelitas Descalços. E quanto à nossa boa Leonor de Almeida, a nossa marquesinha de Alorna que podemos dizer ?   


Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre 1750-1839 foi uma nobre e poetisa portuguesa conhecida nos anais da poesia por "Alcipe". De sangue azul, era filha de D. João de Almeida Portugal, segundo marquês de Alorna e quinto conde de Assumar família perseguida pelo Marquês de Pombal sob acusação de parentesco aos Távoras. A família de Leonor de Almeida foi acusada do empréstimo duma espingarda a um dos conjurados e Leonor foi encerrada como prisioneira com a mãe e a irmã no convento de São Félix em Chelas, de 1758 a 1777, aos 8 anos de idade, tendo o seu infortúnio durado dezoito anos, dos 8 aos 27 anos. Leonor fora claramente malfadada ao nascer e teve além disso uma infância atribulada, os avós maternos executados barbaramente, o pai preso e encarcerado na Torre de Belém e no forte da Junqueira, todos devido a suspeitas de envolvimento no crime dos Távoras.

 Na morte de el-rei D. José, sua filha, e futura rainha D. Maria I, mandou finalmente libertar os prisioneiros do Estado. Durante esses dezoito anos de cativeiro Leonor não deixou contudo de receber uma educação esmerada e uma formação completíssima, além dos custos do cativeiro soube estudar e dedicar-se a trabalhos artísticos e literários, entre outras actividades que lhe são conhecidas sabe-se que Leonor se entregou à pintura e se dedicou à enfermagem, tendo trabalhado como cozinheira e organista do convento. Conhecia várias línguas, desenhava e pintava admiravelmente, possuía vasta instrução científica, e o seu carácter era apesar de tudo afável, amenizando com meiguice e candura as amarguras da mãe e de outros desditosos e desditosas. A audácia de ter afrontado a ira do Marquês de Pombal tornaram-na digna, considerada e respeitada.

Moralmente desgastada saiu do convento e da clausura somente aos vinte e sete anos, demasiado e psicologicamente afectada para que sua poesia pudesse ser um risonho passatempo, o que todavia não obstou a ter escrito quase toda a poesia na prisão Convento de Chelas. Apesar das circunstâncias deixou-nos um legado de composições poéticas interessantes, com uma expressão romântica, demonstrando uma superior e romântica sensibilidade, sobretudo se tivermos em conta as atribulações a que a vida conventual e de cativeiro a obrigaram. Duas mulheres que a história resguardou, uma por ter vivido à custa do misticismo católico, escrito uns livros de orações e um catecismo, e a outra por ter sofrido as agruras da clausura religiosa, publicado obras de mérito cientifico, poetisa de se lhe tirar o chapéu e não me admira ter sido sempre avessa a crenças a fé e a devoções, de crente ou devota Leonor nunca deu mostras. 

 A sua longa vida de nobre dama de corte e de poetisa foi todavia ricamente preenchida, e vivida, quer em Portugal quer no estrangeiro, era dama da Ordem da Cruz Estrelada, da Alemanha, valendo a pena ler com vagar o livro de Maria João Lopo de Carvalho e dar atenção à sua biografia e bibliografia. Leonor de Almeida contaria perto de noventa anos quando foi visitada pelo Marquês de Fronteira, acabara de chegar do estrangeiro e mal D. Maria II a soube entrada em Lisboa como prova de apreço concedeu-lhe de imediato a banda da ordem de Santa Isabel, e renovou-lhe os títulos de 6.ª condessa de Assumar e 4.ª marquesa de Alorna por decreto de 26 de Outubro de 1833.

Faleceu tão formosa e tão segura senhora a 11 de Outubro de 1839 no Palácio de Fronteira, propriedade do Marquês de Fronteira, aproveitando eu para vos confessar ter o último destes marqueses, D. Fernando de Mascarenhas* igualmente Conde da Torre, sido meu professor das cadeiras de Teoria da História, bom tipo, gordinho baixo e simpático mas que me deixou perplexo e em vacilante mais de uma hora, eu chegara atrasado à primeira aula, ficando em dúvida se seria um ou uma professora, tinha uma voz de falsete (não tem que ver com falsidade) e um cabelo encaracolado lindo e louro encimando rubicundas bochechas, inda que não fosse essa a razão pela qual lhe chamavam o Marquês Vermelho. Mas voltemos à nossa boa Marquesa de Alorna pois em mim não corre sangue azul nas veias, para vos dizer que faleceu vinte dias antes de completar 89 anos de vida, tendo demonstrado invulgar longevidade para essa época. Foi sepultada no dia seguinte em jazigo particular, no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, onde poderemos chorá-la. 

* Maria Teresa Horta – Poésis – Lisboa, D. Quixote, pág. 217 


















quinta-feira, 10 de agosto de 2017

452 - PIV & POV by Maria Luísa Baião * .....................




Dois gatinhos costumam rondar a minha casa, não fossem reais e diria que um é o negativo do outro. Um é branco, com malhas pretas, o outro, preto com malhas brancas. Onde um é branco, o outro é preto, e vice-versa, qualquer deles mais manso que uma máquina fotográfica. Além de brincalhões são glutões, nunca regatearam a comida de cão que lhes atiro, e pareço ser a única na rua que não temem, correm mesmo para mim quando me vêem. 

Até há algum tempo atrás andei curiosa, sem que soubesse de quem eram pertença, vim a sabê-lo hoje mesmo, ao mesmo tempo que percebi porque me não obedeciam, apesar de mostrarem por mim uma simpatia fora do habitual. É que embora portugueses, falam moldavo, e os seus nomes, numa tradução mais fonética que gráfica, significam Lindo, um, Bonito, o outro.

O Lindo e o Bonito pertencem a um de muitos imigrantes que “vivem” nas e das obras frente à minha casa. O dono, “Régéchiv”(?), é um simpático homem de trinta anos, engenheiro químico de profissão, a quem o destino trocou as voltas e as ferramentas, do que resultou um ser bizarro, de modos educados e maneiras suaves, num corpo de Adónis onde brilham dois olhos tão azuis que impressionam, como nos impressionam as suas mãos calejadas que não escondem todavia o traço fino que as desenhou,  fazendo com que mais estranho nos pareça o estereótipo de servente de pedreiro que todas nós intuímos.

Lindo um, bonito o outro, são os filhos, de nove e onze anos, cuja foto, amarrotada e amarelecida me mostrou, a preto e branco, tirada numa terra onde as cores parecem não existir, a julgar pelo que ele mesmo me contou. Na mesma carteira, ao lado do lindo e do bonito, uma mulher loira daquelas a quem por cá se costuma assobiar, razão pela qual, me segredou ele, a usa no bolso da camisa, bem junto ao coração.

Está entre nós há poucos meses, mas já domina o português menos mal, coisa que lhe tem dado mais dificuldade que o manejo de pás, martelos e picaretas, com que agora tem que haver-se sendo pau para toda a obra. Do mal o menos, afirmou largando um sorriso feliz, que na sua terra morria de fome, não porque não tivesse emprego, mas porque a fábrica, sem encomendas, não tinha com que lhe pagar. Trabalha entre nós dez a doze horas por dia, seis a sete dias por semana, e arrecada limpos cerca de trinta vezes o que por lá conseguia no mesmo espaço de tempo. Manda para a família um quarto desse valor, o restante amealha cá, para que quando os seus possam vir, terem com que começar uma nova vida. No entretanto todos os quatro dias lhes telefona, o que lhe sai caro mas não lamenta.

Adora Portugal. Porque não ficou na Alemanha, ou na França, onde poderia ganhar mais  ? Simples, aqui há falta de profissionais especializados, e espera que esta situação seja passageira, até que o domínio da língua e a oportunidade lhe permitam vir a trabalhar no seu ramo. De entre os seus conterrâneos na mesma situação só os médicos não conseguem “cirurgiar” por cá, me contou, não porque não sejam bons médicos, mas porque as habilitações não são reconhecidas, o que irá suceder-lhe, mas se um cirurgião não pode exercer, um engenheiro pode sempre fazê-lo, ainda que não como quadro superior responsável.

Fiquei da nossa conversa com uma solene impressão que na Moldávia conhecem melhor do que nós as lacunas dos nossos recursos humanos e a nossa falta de formação e especialização em todas as áreas, o que faz com que, a escolha do nosso país seja para eles mais rentável a médio e longo prazo. Que aventuras terá este homem para contar ? que sonhos loiros lhe povoarão a mente no negrume das noites passadas na barraca em que se acoita ? que passeios percorrerá o seu imaginário de mãos dadas com o bom e o bonito ? que amor se está forjando no tempo e na distância que lhe coarctam a vida ? Que estranhas forças nos dá a mente e a vontade quando o queremos ? Porque as não temos tantas (os) de nós, sempre esperando que outros  façam ? É por eles que esperamos ? Moldavos, romenos, ucranianos ?

Ou por D. Sebastião?  

* Publicado in DIÁRIO DO SUL - Coluna “Kota de Mulher” em 07-06-2002 by Maria Luísa Baião


451 - GATOS PRETOS, GATOS BRANCOS by Maria Luísa Baião * texto integral - VERSÃO ORIGINAL, SEM CORTES.

   

Também eu sou testemunha… pesa-me a memória com tanto testemunho. Mais um oráculo…

Fui criada desde menina entre tabernas, à rua de Machede a do Xico Fofa, das favas e batatas fritas, que adorava e cujos pacotes em papel pardo ostentava com orgulho desafiando a inveja das amigas. Do outro lado do quarteirão, à Mendo Estevens, a do velho Patrício, acerca de quem, só crescida soube ser o apelido que lhe coubera em sorte, porquanto pensava para com os meus botões ser ele patrício de todos quantos se lhe encostavam ao balcão. Em cima desse balcão me punha meu pai, qual boneca, dançando ao ritmo das vozes e lamentos que os homens soltavam.

Ali, no Farrobo, onde passei a meninice, já então existiam oráculos, um deles de tal ordem, que por inconveniente toda a gente evitava mudando de passeio. Dava pelo nome de Perna-de-pau, e nem me lembro dele lúcido nem falho das razões que então os homens escondiam, de que só falavam em surdina e que somente o poeta ousou gritar, lá de longe, de Argel. Também o Perna-de-pau muitas vezes exigia a decifração dos seus ditos, não que fosse menos que António Aleixo, não lhe apanhara fora o jeito de emparelhar as palavras. E havia sempre gatos pretos nas janelas.

Então sucedia descer a Mendo Estevens ruminando os significados do que ele dissera, acabando a rua destrinçando os nós de cada uma das suas homílias, para quedar-me muda e surda, vendo os homens que na espartaria do senhor Gaudêncio atavam os nós das redes/camas, sem que nunca tivessem logrado desatar os das suas vidas. Ainda hoje o senhor Gaudêncio, apesar de metade de nós não fazerem já a mínima ideia do que seja uma espartaria, ostenta com um orgulho que lhe louva as origens, encimando o estabelecimento junto à Praça do Geraldo, “Espartaria e Cordoaria Gaudêncio”, para mim o homem que consubstanciou o primeiro e mais notável choque tecnológico a que assisti, quando substituiu, com visão e engenho, o esparto, o linho e o sisal pelo nylon.

O Farrobo era um mundo à parte. A história estuda da urbe a judiaria e a mouraria, a sociologia devia estudar o Farrobo, onde conviviam lado a lado, subsistência e alegria. E lembro-me tão bem de gatos brancos nas janelas. Ali vida era sobrevivência tecida em filigrana. Pouco mais avançámos desde a chegada dessa tecnologia aos mouros da cordoaria. Em miúda decifrava eu os odores se calhava passar à taberna do Carranca, e entretinha-me, adivinhando e ordenando por intensidades, as ervas com que compunha os ramalhetes que lhe garantiam casa cheia, rememorando tudo quanto minha avó Joaquina me ensinara.


Fui um destes dias à igreja, saí dela lembrando as revistas de encher o olho da papelaria do senhor Manuel, Papelaria Angola, capas de revistas e vitrais, não vi a diferença. Gatos pretos, gatos brancos, são iguais. Bom homem o senhor Manuel, Deus lhe tenha a alma em descanso. Uma vida dedicada a vender sonhos, da Crónica Feminina ao Corin Tellado, depois da Maria e do Século Ilustrado. Encheu de sonhos as raparigas da Pró-têxtil, depois Melka, que nunca vestiram uma camisa digna desse nome nem encheram a barriga. Mas emprenharam de sonhos, o melhor para quem vê recusada a vida. O soalho da igreja, o mesmo cheiro a lavado na relojoaria do senhor Cabral, ali à Porta Nova. Sempre remendando as horas sem nunca ter tido uma de sorte para si. Sempre amável, sorridente, sempre com um olho proeminente virado para os mecanismos, outro para os ciganos. Sempre pobre e sempre contente. De vez em quando caía-lhe o olho de ver e fazia que nos não via. Pausa, algumas palavras simpáticas para nós, e o soalho sempre lavado, sempre exalando aquele odor a madeira molhada de que ainda hoje gosto. Talvez por ter sido simpático, talvez pelos despertadores ciosos dos momentos programados, talvez pelas campainhas e caixas reluzentes de alguns que também vendia fiados. O tempo a prestações, hoje nem o tempo a estações. Nem vai havendo gatos, nem pretos nem brancos.

E a Drogaria Bacharel? Que o saudoso senhor Silva deixou ao empregado mais fiel? Tão fiel que está hoje como sempre. Ah ! Falta-lhe agora a máquina de dar pontos nas meias de vidro, falta, pois não faltara, ele mesmo tivera o cuidado de pegar nessa senhora, nessa colega, p’ra juntos remendarem as próprias vidas, casaram e foram muito felizes, ainda são. Meias que ninguém hoje remenda, remenda-se a vida quando e se ela tiver remendo. Mas nesses tempos os jardins tinham peixinhos, livros, por vezes música e orquestras no coreto, a data nos canteiros, cerzida a flores e amor de jardineiros. Tudo eram testemunhos, oráculos, nem uns nem outros os tempos hoje consentem. As gentes já não sentem como dantes. Éramos um país de marinheiros, hoje nem de navegantes. Os primeiros porque verão o seu testemunho sempre adiado pelas circunstâncias, os outros porque as errâncias se viraram de novo para as Franças, as Espanhas, e nós, apesar de tudo, com tanto mar.

Mas como a ele voltar se não há ir? 

 * Publicado in DIÁRIO DO SUL - Coluna “Kota de Mulher” Outubro de 2005 by Luísa Baião -  ESTA VERSÃO É A ORIGINAL, SEM CORTES.