terça-feira, 10 de maio de 2016

345 - O PRÉMIO VALMOR ERA EU *…........………



A cena não é fácil pra mim, não que a tenha esquecido, ninguém esquece uma rejeição, ainda por cima coisa única na vida, ainda por cima numa idade tão tenra, ainda hoje não sei como não fiquei traumatizado, revoltado ou mesmo gago. Nem sei que não viu em mim a Quinita Santos para me ter recusado, tal como não sei porque depois disso não dei em incendiário ou bombista ou coisa do género, teria justificação acho eu e Freud decerto explicaria.

A coisa conta-se em poucas penadas, não que me agrade, como disse faço por nem lembrar essa rejeição, por isso nem sei precisar se ela ia no banco de trás ou se entrou na carreira em Montemor, a verdade é que só depois a vi e, não me interessando já nada, nem para nada, esqueci a razão que aduziu para a viagem a Lisboa, a mim, contei-lhe com alguma presunção, tratava-se do abandono desta cidadezinha de província, numa tentativa de encontrar a sorte na capital onde já tinha à minha espera um contrato. Esclareço que com a presunção e vaidade de quem tinha catorze ou quinze anos, no máximo dezasseis.

Arranjara emprego no escritório do Hotel Lys, mais tarde Lis, em plena Avenida da Liberdade, junto aos Restauradores, hotel cujo edifício tinha sido alvo da atribuição do Prémio Valmor, mas mesmo depois de alguns meses de vivência em Lisboa eu não estava elucidado sobre o que era esse prémio, só muito posteriormente vim a saber estar o prémio ligado à arquitectura e não, por exemplo, ao culturismo, que por essa época assolapava a capital e por arrastamento, a mim. Isto devido ao facto das senhoras do chá me chamarem inicialmente por “o nosso alentejano”, ou “o nosso eborense”, e mais tarde cada uma ter tido ensejo de me reclamar como o “seu prémio Valmor”. 

Toda a minha confusão vinha daí, e demorou tanto tempo a desvanecer-se quanto tinha demorado a instalar-se. A fachada do hotel era linda de estilo, era bonita, porém os funcionários não tinham ordem de entrar ou sair pela porta principal, ordens do senhor Garcia, o gerente velho e rezingão, para nós estava reservada uma entrada de serviço, gente menor, e é possível descortinar nas fotos bem visível à direita do edifício um portãozinho para o pessoal, dando acesso a uma escada exterior afundando até três ou quatro pisos abaixo do nível da rua e onde se situavam os armazéns, a copa, os serviços, as caldeiras, a dispensa dos víveres, que se fosse visitada pela ASAE teria originado um terramoto, e ainda os quartos dos funcionários. O meu quarto situava-se ao lado das caldeiras, quentinho no inverno mas o inferno no verão, até ao dia em que o Éden ou o Tivoli passou uma fita de guerra em que as caldeiras de um navio explodiam sob o impacto de um torpedo aliado e aquela maltinha ficou toda cozidinha. Nunca mais ali dormi.  

Esse insuportável quartito moldou muito do meu estilo de vida em Lisboa, já que tudo fazia para não voltar a ele antes das duas ou três da manhã, altura em que se tornava suportável e a partir da qual conseguia dormir alguma coisa. Depressa magiquei um estratagema, sendo eu quem no escritório controlava a ocupação dos quartos, depois de arranjar nos serviços de limpeza uma chave mestra de que fiz cópia, passei a dormir todas as noites num qualquer quarto vago à minha escolha e que abandonava antes das nove, altura a que entrava ao serviço e tinha que estar já lavado e comido, a mesma altura em que as funcionárias iniciavam o seu deambular pelo hotel tratando dos quartos que iam vagando. Como eu fui amado, como me amaram lá, como me amavam ! Apesar de grande idiota fui e tenho sido um homem feliz.

Acho que nem chegou a um ano a minha experiência no Hotel Lys, contudo ele e Lisboa viriam a influenciar inclusive alguns dos meus relacionamentos futuros, quer tivesse tido eu neles um papel activo quer esse papel tenha sido meramente passivo, no final o que conta é o saldo, foram relacionamentos que partilhei e vivi, talvez desafiadores, talvez estranhos, de qualquer modo e felizmente sem resultados desastrosos a assinalar (links no final do texto). 

         É que, para me socorrerem ou apoiarem na integração na capital muito se esforçaram as senhoras habitués no salão de chá do Lys, senhoras nessa altura, hoje não lhes chamaria jovens mas senhoras ainda não seriam, era gente à volta dos quarenta, quanto muito cinquenta e com uma pedalada que, não fora a minha frescura e teria custado a acompanhá-las. Uma delas, de entre todas a mais beata e a mais devota tomou-me sob a sua protecção iniciando-me nas noites do “bas fond” alfacinha, onde era rainha e dominadora, a quem acabei por escolher os cabedais, os chicotes, as algemas e outros adereços MILF** enquanto ela me oferecia blusões de cabedal, capacetes com viseira de astronauta, uma novidade na época, coisas que íamos comprar à Butimoto Corba, uma loja para motards ali aos Anjos, na intersecção da rua do Condeça & Ferreira, dealer da Kawasaki, e do Stand Vidal, que vendia motas usadas e novas multimarcas. Eu tinha uma Solex com a qual corria Lisboa em peso e, desde que só mostrasse o blusão, o capacete e as botas à maneira, as miúdas eram um maná. Adoravam o meu look, o cheiro a óleo e a gasolina.

Vem a arenga de hoje responder à Sandra, olhem só do que ela me foi lembrar, Sandra que, já nem sei a que propósito me atirou com um Lys, a que somei uma bocarra provocatória da Zéza, apelidando-me de pinga-amor, a mim, um homem dedicado, com um casamento exemplar e feliz que já leva muito mais de trinta anos. Quem vê caras não vê corações, o mundo é como um carrocel numa feira *** e não pára, nunca pára, umas vezes saltei-lhe para cima outras levei dele encontrões. Não se experimenta incólume um carrocel em andamento, não se mete lá o pé, ou se lhe salta para cima ou se fica vendo-o girar cá de longe. A vida pode ser um chupa-chupa de algodão doce, mas é preciso que nos lambuzemos dela. O poeta disse-o “ Confesso que Vivi”.****

Cabendo-me a mim no escritório os débitos dos clientes, bafejava com ousada condescendência e perdão as contas das amigas do chá das cinco, coisa que elas me retribuíam com mimos e atenções. A desabrida Solex em que corria Lisboa fora oferta de uma delas, e anos mais tarde ter-me dedicado a restaurar uma BSA 250 Gold Star teve muito que ver com o sonho vivido nessa altura, ser boletineiro da Marconi cavalgando essas motas impressionantes distribuindo telegramas por toda a capital, como quem na Feira Popular desafiava a gravidade no poço da morte, calçando umas fenomenais botas de cabedal pelos joelhos…

Essa mota, depois de restaurada e melhor que em nova foi por sua vez posta à venda por mim no Stand Vidal passados alguns anos, a merda das motas inglesas nunca deixaram de babar óleo pela junta da cabeça lixando-me imensos pares de calças caríssimos o que me irritou bastante pois não dispunha de caneleiras até aos joelhos como a malta da Marconi ou a minha amiga D. Senhora Hermínia nas suas sessões de sado masoquismo e MILF das noites quentes e loucas de Lisboa.*****

Verdade que nessa época da minha vida vivi muito, vivi muito e vivi depressa, contudo tive oportunidade de me redimir de todos os excessos e pecados nos anos em que leccionei no Oratório de S. José, Salesianos, gramei dezenas ou centenas de missas diárias logo às primeiras horas de cada manhã, se para outra coisa não serviram ao menos limparam-me a alma.

Desde então não me tenho mantido casto, mas quase.

Capice ?





  
*** https://youtu.be/VEoCAUZSfwA   - Winner of Eurosong in Vienna 1967. Sandie Shaw - Puppet on a String -  em português, " O Amor É Como Um Carrocel "

segunda-feira, 2 de maio de 2016

344 - OBNUBILADOS ..................................................

illustración de Kaethe Butcher

Não era o túnel do Marão, que aliás anda em obras de Stª Engrácia, a terra toda revolvida, mais parece ter caído ali um avião, mas é o túnel que sempre aproveito quando calha estarmos juntos. Entre a cabeça e os ombros, no lugar do pescoço fica um túnel por onde, deslizando nos lençóis de seda, faço sumir o braço que, como um cinto de segurança lhe atravessa e segura o peito num carinho acolhedor e lhe permite acolher-se ou encolher-se na conchinha do meu amplexo.

É complexo este ritual que distendemos no tempo e que se repete, sempre e nunca igual, assim haja oportunidade, pois de motivo nem carecemos. Antes diria padecemos, por nem precisarmos de causa mas instigarmos os sintomas. Enquanto isso o outro braço cabriola de alto a baixo e percorre-lhe o corpo de viola, subindo e descendo vales e morros, detendo-se aqui no estreito da cintura, ou ali, em duas maçãs maduras que lhe dão e completam a formosura, acolá, em atrevida investidura onde, ou como, ou porque é dia da mãe e lhe afago o ventre quente e liso com nada inocente candura e ainda menos juízo.

E, se e quando as caras coladas, febris, onde esta barba rija e dura que não arranha nem perfura arrasta atrito doseado como uma linha de branquinha, o mais certo é deixar um de nós afogueado e o outro em doce loucura. Aperto então o meu abraço, num aconchego de regaço em que ajeitamos a conchinha e, brincando c’o umbigo dela segredo-lhe; querida enfiarei o dedinho até te encontrar o baço. Risota pegada, cócegas, voltas e reviravoltas para, no fim, nos quedarmos na mesma, esfomeados, mais apertados, mais enlouquecidos, mais abraçados que nunca.

Como num tambor, sinto-lhe no baixo-ventre as vibrações das gargalhadas e pressiono-lhe a pele como que querendo ouvir-lhe também o tam tam tam do coração. Regularmente, a mão termina sumindo-se por baixo do elástico e, como cabeleireiro aquilatando os cabelos da cliente, assim a ponta dos meus dedos lhes aprecia a espessura, a densidade, a maciez para, num repente, eu gaiato e a prima Esmeralda sorrindo-me num desafio:

- És capaz de adivinhar onde as mulheres têm o cabelo mais encaracolado Bertinho ?

Era manhosa a Esmeralda e até aos seus dezanove vinte anos a diferença de idades sempre lhe serviu para reinar comigo, para me gozar ou atrapalhar, eram dois ou três anos que lhe davam sobre mim uma maturidade acrescida, porém não passava daí, não era mal-intencionada, era simplesmente manhosa e um tanto ou quanto maliciosa. Claro que acabou por me pegar na mão e, apagando a luz, me conduziu e posteriormente mostrou o lugar onde as mulheres tinham o cabelo mais encaracolado. Estupidamente a mente poluída tinha sido a minha, pelo menos os dela não eram encaracolados, pelo contrário, eram bem lisos, macios e sedosos. Quando abri os olhos já ela, matreira, tinha composto as roupas e espetado diante deles um mapa de África no qual se destacava uma preta de carapinha. 

Esqueçamos a Esmeralda coitada, que já nem está entre nós, a queda de um avião nos alpes franceses há um ano atrás foi-lhe fatal, lembram-se ? Às mãos daquele jovem e louco piloto que se trancara na cabine*. Nem os ossinhos lhe encontraram, nem tão pouco poderemos dizer a terra lhe seja leve, apenas uma bolsinha com os documentos. Não foi caso único, antes assim coitada, nem deu por ela chegar… nem doeu…

E, enquanto eu perdido nos meus pensamentos, ela afogueada, fechando e abrindo as pernas numa aflição que me apressei a serenar-lhe, entalando nelas a mão e acalmando-a com a pressão de um carinho, logo alternando ou aliviando com uma terna caricia mal o respirar tranquilizou e os dois, novamente cúmplices, matando um esfolando o outro e chutando para o fundo da cama tudo que estava a mais ou atrapalhando para, e agora sim, a minha mão na sua nuca, acariciando-lhe os cabelos, os lábios aflorando-lhe a orelha, a face, a boca, o mindinho tacteando, abrindo, entrando e aberto o caminho vão dois, são agora dois, escorregando, deslizando, acariciando, as coxas contraindo-se, apertando-se, sobrepondo-se, os olhos que se fecham, as mentes que se obnubilam, o desejo tomando a dianteira, os corpos que rolam, tu por cima, não não, tu, de repente uma tenaz, umas pernas enlaçando-me enquanto algo sugando-me voraz, faço-me leve, descarrego o peso nos cotovelos, os cabelos que se emaranham, os lábios que se afloram, as línguas que se enrolam e as bocas que se mordem, os pelos que se tocam e nos excitam, o tudo que se quer e que se dá, tudo, todo, toda a aflição, não, não é aflição é precipitação, não, também não é precipitação, é antes uma aflição sem precipitação ou uma precipitação nada aflitiva, é pressa, pressa de chegar donde não se quererá partir antes ficar, fazer durar, prolongar, amo-te, não te mexas amor, não tires, quero ficar assim sempre, beija-me novamente,

Beijooooooooooooooooooooooooooooooooo

Não me acordes…



sábado, 30 de abril de 2016

343 - O LIVRO DA LEOPARDA *................................


Não sei quando foi que me enganei e meti na cabeça que o cacilheiro era aquele, por isso quando me vi nas Berlengas fiquei sem saber quem culpar que não eu. Falara-se em farol e em cadelas e a minha mente divagara para noroeste, onde certa vez para cumprir uma convalescença passara umas férias de sonho com a Carmelinda, o problema deu-se passadas semanas, instáveis como são as mulheres, depois de bem tratado e recebido acabei afastado como um cão, uma cadela a Carmelinda.

Por isso estava na ria quando dei por mim, dormira bem e só acordara a páginas tantas, ainda sonhando com a antiga base de Centro de Aviação Naval do Algarve, com a I Guerra Mundial, com minas, com um tempo que em boa verdade dobrou em mim as razões para duvidar daquela paisagem mas, desde o início nas nuvens, nem me admira ter embalado no engano, não fora Clézio, que me acompanhava perseguindo sem sucesso o cão, ter-me dado uma cotovelada muito provavelmente nem teria acordado do processo em que me enredei.

Não estou em férias, contudo deixei-me levar por esta leitura leve e indolente que me trocou as voltas, terá sido a similitude das capas a dar-me a volta já que me mentalizara e prepara para uma outra obra, para um tour de force, e colocara à mão dicionários e enciclopédias, um passe-vite para diluir e dois passadores para coar e destilar um soluto altamente concentrado, sei lá, como o leite condensado ou o ketchup, ligara mesmo a máquina do café e arrumara a seu lado duas embalagens grandes de capsulas da Delta Q nº 10, e quando afinal puxo as redes, não é que viessem vazias, eu é que estranhei logo a sua lassidão, isso e uma insustentável leveza, preparara-me para as puxar, para me esforçar e no instante quase caí de cu com a reacção à força aplicada e que não teve contraponto.

Não chegou a ser uma desilusão, foi mais uma descompressão, e vindo o dia de sol, sem ventos nem chuviscos, céu limpo, livre de nimbos, cúmulos, cirros e estratos, morador que sou e entalado entre o mosteiro da Cartuxa de Santa Maria de Scala Coeli e o Alto de S. Bento, tendo à minha beira extenso colorido e atapetado florido de ervas e malmequeres, agarrei num extracto bancário acabadinho de chegar, enfiei um boné e um blusão leve a fim de tornear a Torralva e feito cigano atrevi-me a galgar muros e prados até conquistar a Torre do Geraldo na encosta de S. Bento, onde a história dá por degolados pelas tropas de Geraldo Sem Pavor dois sarracenos que estariam de vigia e sonhando com Xerazade correria o ano de 1165.

Não levei comigo cão nem cadela, sei que ao voltar terei esperando-me uma corridinha da Mimi, direitinha a mim de rabo espetado no ar, atrapalhando-me o andar e roçando-se-me nas pernas. Foi precisamente ao regressar e imbuído destes pensamentos que ia sendo colhido por uma das embarcações de Mestre Casaca, traz nas artes da xávega uma dúzia de táxis, ou mais, e ainda o pronto-socorro, que em todo o dia não param, para cá e para lá, andam loucos desde que alguém agitou os mares e Neptuno lhes atiçou a Uber, não há farol aqui mas montou uma altíssima antena para os radiotáxis e que os russos devem conseguir ver da estação espacial.

Caminhei umas boas duas horas, rebolei-me nas ervas, li, ouvi música, noutros tempos teria mandado um charro abaixo, porém agora tenho que manter conduta exemplar ou não me perdoariam. Foi tarde tão descontraída que chegado a casa levava ainda atravessado nos dentes um comprido tronco de palmeira que só larguei para conseguir transpor o portão e farejar tudo com muita atenção,

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
                                                 Mário de Sá-Carneiro

Volto a dar pelo silêncio, um silêncio de que nunca me dera conta mas há mais de duas horas me acompanha. Verdade que descomprimi, é um direito que me assiste, e de vez em quando até sabe bem, distender a mente e os músculos, em especial os músculos, foi o que vi na Leoparda, rastejando entre as flores e as ervas, confundindo-se com a vegetação, descomprimindo, como eu e, em vez de malhar no ferro frio tentando meter a densidade do universo numa coluna de x palavras ou y caracteres que certamente a obrigam a mamar, quero dizer aguentar, respeitar, cumprir, tirou férias e agarrando na cadela foi desarvorar, apanhar ar, tirar vacances, tal qual eu tirei os ténis ao chegar a casa e me estendi no sofá, sofrido das cruzes, um pé descalçando o outro e versa vice. 

Nem demorou que os Reebok caminhassem ao calhas no meio da sala, não tarda irá o boné o polo, e a Leoparda, como será ao chegar a casa ? A música baixinha ? Dedicada à cozinha ? Arrumadinha ?

Era eu uma vez estudante e, não lembro já o porquê, procurei umas colegas num quarto que tinham arrendado no burgo, a Eduarda Branco, a Teresa qualquer coisa e a Dalila não sei quantos uma algarvia do Burgau, eu nem queria acreditar, jamais vira tamanha desarrumação, e tanto sutiã tanta calcinha tanta cueca até debaixo das camas, senti-me ligeiramente deslocado e enfastiado, acabámos o estágio e nunca mais as vi, nunca mais consegui esquecer tal nem deixar de me preocupar com o facto de sim ou não, se já terão lavado aquela roupa suja toda… 

Mas ela não lava roupa p’a descontrair, ela sonha, ela voa, ela plana, abre os braços e lá vai ela, ela e a cadela, tal qual eu, não eu com os Beatles, muito menos com o amaneirado do McCartney, eu é mais com a pesca, com a Micas do Quiosque Primavera, a Célia da Padaria Pão Da Terra, a Serafina das análises, a Cândida da farmácia, a Maria Júlia da pizzaria, a Lourdes da frutaria, ela perdeu a relação ou as relações disse a páginas tantas, pois eu procuro é mantê-las, cultivá-las, ela entrava em campo e chutava, chutava ou fintava e fintava, já eu quando entrava em campo fumava, fumava … Que tomará para sonhar assim ? Lá que descomprime, descomprime, e lá se vai a realidade…


Aliviar é a segunda coisa que mais gosto de fazer, aliviar-me, larguei o passe-vite e os passadores ou coadores, aumentei o volume ao Jorge Nice a fim de abafar por essa via outros ruídos e sentei-me, como que num cadeirão, numa cadeira de baloiço ou num trono e ali me deixei ficar, meditando, nas Berlengas, no farol, nos petiscos do velho Baltazar, a propósito a coisa que mais gosto é comer, comer e meditar, e ali estava eu e a cadela da Carmelinda, sim, primeiro um anjo para mim depois uma autêntica cadela, só faltou morder-me, sei do que as mulheres são capazes quando estão zangadas, temam-lhes as represálias…

Tranquei a página à editora não vá ela querer ferrar-me…

Por isso voltei a sentar-me, p’a descontrair de novo, p’a descontrair mais, e preparei-me para focar a atenção na Grande Golpada, ou na Golpada à Italiana, Um Golpe à Italiana, livro numa mão, comando na outra mas na hora H o CD emperrou e népia, perdi a calma…


Felizmente a Leoparda andava calma, tirara férias, e a sua calma trouxe paz à aldeia que costumava rondar, paz e contenção, é bom fugir à pressão, à compressão dos dias, antes levar com alguns chuviscos no toutiço e aguentar a pressão atmosférica, essa ao menos descomprime, eu descomprimi deste turbilhão que vi, vivi e senti, queria agradecer mas, um velho conselho traz-me de volta ao bom senso, virei bicho cortês, cavalheiro, foi isso, armei-me de bom senso, sensibilidade e bom senso. 

A pressão atmosférica muda-nos, humaniza-nos, atrai os chuviscos, pode até molhar-nos claro, se não corrermos as janelas de caixilho, quanto às pessoas, as pessoas realmente devem ser deixadas em paz…  






quinta-feira, 28 de abril de 2016

342 - O LIVRO DA LEONARDA * ..............................

                                          
           
Era grande a expectativa naquele livrinho, tanto mais que tinha deixado para trás um quid pro quo com a editora, fiel e canina defensora da autora, questões de estética a que a editora faltou com a ética e a quem tive que ludibriar para conseguir um dos exemplares. (1)

Grande era realmente a expectativa, tanto mais que adoro lê-la, tal como adoro cadelas, verdade que por questões práticas tenho uma gata, o que não me impede adorar a canzoada do meu filho. Isto anda tudo ligado, também estive algumas vezes naquela ilha, e nas Berlengas, de convalescença, com a Carmelinda e o velho Baltazar, que era faroleiro e óptimo cozinheiro, já lá vão uns bons quarenta anitos.

Mal compro o jornal a primeira coisa a ler é a Leonarda, como eu e o meu filho tratamos entre nós a Ana Cristina Leonardo, de quem somos leitores fiéis. Adoramos os seus enormes textos e a sua extraordinária clareza e capacidade de análise e síntese, aquilo é cultura, cultura destilada, depurada, poderão portanto aquilatar das minhas expectativas. Nem foi a capa nem o trabalho de handcraft pingando aos poucos uma boa estratégia de marketing, mostrada gota a gota, que me convenceram, aliás tão grande era a expectativa que quando recebi o pacote e o sopesei pensei logo nos meus queridos dezanove euros.

Corri para dentro e abri-o precipitadamente, mesmo assim, saquei-o forçada e desajeitadamente do envelope e fiquei a mirá-lo e a remirá-lo. Deixei que a emoção tomasse conta de mim calmamente e, num repente quebrou-se o feitiço, isto é, deixei de embirrar com aquela capa psicadélica que inicialmente me lembrara a bancada de mestre Paulino, sim, esse mesmo, o dos "pássaros de poeta", sempre abarrotada de tintas entornadas, misturadas, experimentadas, esqueci tudo o resto ao ver-me transportado para os meus doze, treze anos, para o meu primeiro emprego, a SOMEFE, o senhor Nelson guarda livros, os grandes alfarrábios cinzentos do Deve e do Haver que me calhava transportar de lado para lado, a capa de pano, manchada, tal qual esta capa da Leonarda, depois as caixas de arquivo antigas, o mesmo padrão embora mais miudinho, mais tarde sujeito a uma evolução que tornou as caixas e o padrão num amarelo abelha imitando, mal, a pele dos leopardos das neves. 

Na sala ao lado o velho Rosado, digo o senhor Rosado o patrão, frente a ele um militar reformado dos abastecimentos, o Coronel Varela salvo erro, a seu lado um senhor Piteira de modos afectados, amaneirados, e de casaco, sempre o mesmo casaco de espiga, e emparelhando com ele uma ela, havia uma ela que alegrava todo o pessoal do escritório, das oficinas e da fundição, os cabelos louros, um louro pintado, lábios tintos de vermelho vivo, Francisca, acho que era assim que se chamava, D. Francisca, ou D. Maria, sempre pestanejando para o senhor Piteira e revolvendo de ciúmes as entranhas ao senhor Nelson. 

A esta hora decerto quase todos enterrados, e eu para aqui lembrando-os, de livro ao peito, nunca me enganaram, em especial aquela parelha, aqueles dois... 


     
 Leopardo das neves, provavelmente uma fêmea, uma “Leoparda”

E, abraçado ao livro da Leonarda tal qual em menino abraçara os calhamaços da contabilidade corro para a salinha, ainda não o abri e já o amo o raio do livro, o mestre Palolo rindo porque ao debruçar-me sobre o balcão do atendimento pressionara os intestinos e largara um valente traque, mestre Palolo rindo, o Malato rindo, esse não ri mais pois há tempos deu-lhe um badagaio, uma trombose ou coisa assim que o deixou arrumado e já só diz dádá dádi, eu todo vermelho de corado, o senhor Nelson rindo também.

Mestre Palolo que anos mais tarde me convidaria a frequentar os convívios de tertúlias  d’A Trave, onde pontificavam o seu mano, António Palolo, José Cachatra, mestre Paulino Ramos, mestre expressionismo, mestre impressionismo, o senhor abstracto, messier surrealisme, Pássaros de Poeta, Évora, a Urbana, o senhor Amado, as minhas tias, o Sinca Ariane novo, Sesimbra. Finalmente abro-o, exemplar único, fait à la main, procuro-lhe o número, se fosse numerado o meu seria o 1283/72, não é, é o ISBN qualquer coisa, capa dura, cartão, como o cartão das tais velhas caixas de arquivo, papel de primeira, impressão personalizada, dedicatórias e citações em inglês, francês, etrusco e sumério, isto é cultura porra.

 É leve e foi caro mas valeu a pena, handcraft, cosido à la main, à mão, coisa pessoal, não vem assinado mas assinei-o eu, Baião, com um grande rabisco a rematar o ó, agora é meu, pessoal e intransmissível, nem irá para a estante, não tem lombada, perder-se-ia entre os outros troféus, cerimoniosamente irei colocá-lo onde todos o vejam, como bibelô largado descuidadamente no aparador, reparo bem e são mesmo citações de Clézio, Dickinson e Francis Ponge, quanto não vale isso porra ? Quanto ? Digam ! E as Fotos ? 

A falésia, a flora, o farol novo, finalmente dou-me conta do papel vegetal e apalpo-o entre os dedos, os olhos fechados, segurando sem apertar a banha que a mãezinha me mandara buscar à mercearia do senhor Gerardo, na volta correndo atrapalhado para que a banha não tivesse tempo de derreter, o papel, grosso como este, opaco ou transparente dependendo da gordura impregnando-o. 

Anos mais tarde o professor Silva, os transferidores, compassos e tira-linhas, os meus dedos pretos da tinta da china, a folha de papel vegetal impecável, sem um borrão, círculos, circunferências, revoluções, rectângulos, cones, todos os sólidos desenhados com primor, limpo uma lágrima, depois uma cascata delas, vou lê-lo às escondidas, só para mim, só eu…

Por este turbilhão que vi, vivi e senti queria agradecer mas, folheio-o e dou com um conselho que me traz de volta ao bom senso, realmente as pessoas devem ser deixadas em paz…. 








quarta-feira, 27 de abril de 2016

341 - ELE TRATARA-A DOCEMENTE POR ZÉZA...


Não era para mim de todo clara a razão pela qual ela ajeitara o peito (peitos) dez vezes em quinze minutos, decididamente era notório, notava-se não trazer sutiã, o volume dos seios, arredondados e fartos moldava-lhe graciosamente a camisa a que, descuidada ou propositadamente deixara os botões cimeiros por abotoar. 

Para além disso era bonita, talvez a idade lhe tivesse moldado pacientemente a beleza e as formas, o cabelo, cuidado, não se cansava de o pentear com uns dedos finíssimos e brancos, rematados por unhas bem vermelhas, cabelo que mais parecia o enxame de abelhas que comummente observamos sem graça na raça negra, nela tinha porém um ar rebelde e até certa graciosidade, o que despoletou em mim um sorriso que tão repentinamente quão esbocei, escondi, cioso que no café me vissem e fosse porventura mal interpretado.

Na mesa ao lado dois jovens dos seus vinte e tal anos manuseavam, experimentavam e discutiam alegre e acirradamente telemóveis há mais de duas horas, creio já ali estarem quando cheguei, enquanto na mesa em frente, lenta e cerimoniosamente um velho, decerto fora homem corpulento, mastigava cuidadosamente uma torrada acompanhada por um bule de chá quente e fazendo-o tão vagarosamente que me pus a mirá-lo pelo canto do olho, apostando comigo mesmo quando seria que, mau grado tantos cuidados deixaria cair a dentadura.


E por falar em dentes voltei a lembrar-me andar há mais de duas semanas para visitar a brasileira minha dentista, embora não me doa dente nenhum, nem vislumbre qualquer cárie, a verdade é que meia hora após lavar a dentuça estou com um hálito capaz de tombar um cavalo, ora não padecendo do estômago só pode ser mesmo a merda de um dente cariado. Assunto a resolver urgentemente, que isto de andar constantemente xupando rebuçados de mentol ou bochechando com elixir oral para disfarçar o hálito fétido, não é solução que possa prolongar, até porque ao xupar tantos rebuçados, quando me sento na sanita em vez de empestar tudo deixo no ar um ténue e vago aroma ambiental a eucalipto que me surpreende e nem é desagradável de todo.

Dei por este fenómeno um dia que me vi apertado no Café Sport e ao sair puxei o autoclismo mas esqueci fechar a porta, que é de correr, pois para meu espanto vários fregueses, nariz no ar, extasiando-se, largaram um;

- Hummmmmmmmmmmmm ! A primavera este ano tardou mas chegou em cheio ! O vento hoje é soeiro e sopra dos lados da Cartuxa !

conquanto se mostravam surpreendidos e agradados. Não que eu costume frequentar o Café Sportif, não sou habitué, vou lá de vez em quando, é agradável, fica perto de casa, o senhor Paulino é uma simpatia, ele e a esposa, e as casas de banho têm um chão que se poderia lamber. Pena a televisão sempre tão alta e o senhor Paulino ultrapassar as barreiras do bom conversador e espetar-nos uma seca mal nos descuidemos, quem sabe se por ser licenciado em direito, talvez, o que sei é que transforma o mais pequeno assunto num processo cível e depois, sendo a justiça lenta o assunto arrasta-se… Tem dois ou três gatinhos que ronronam por ali e já me conhecem, gosto deles e eles gostam de mim, mal me vêem ocupam uma cadeira na minha mesa, talvez por eu cheirar a gatas, mais concretamente à minha Mimi que só falta mijar-me em cima para marcar a sua posse, o dono é dela e acabou-se.

No entretanto e após ouvir gratuitamente tanta explicação sobre as capacidades e o funcionamento dos telemóveis não me contive e disparei;

- E sabem os meus amigos que se no tempo da Pide já houvesse telemóveis teríamos ficado todos super lixados ?

claro que não utilizei a palavra lixados, fui mais assertivo e socorri-me de uma linguagem mais próxima da deles, mais jovem, mais solta, mais livre, mais descomprometida, uma linguagem capaz de lhes captar a simpatia e a atenção, quiçá a empatia, não tendo sido por isso que os surpreendi, pois na verdade o que lhes disse foi; e sabem os meus amigos que se no tempo da Pide já houvesse telemóveis teríamos ficado todos super fodidos ?

E logo um deles;

- Não me diga ! Mas porquê ?

E lá lhes expliquei que a Pide fazia escutas à rede fixa, o que agora com os modernos equipamentos e a rede móvel se tornaria mais fácil pois as conversas não se limitavam a fluir por fios mas também pelo éter (tive que lhes explicar pacientemente ser o éter o ambiente que se imagina preencher todo o espaço e que serve para que as ondas electromagnéticas sejam transmitidas e não uma substância líquida altamente inflamável e volúvel, fruto da desidratação do álcool puro através do ácido sulfúrico), e mais, com equipamento sofisticado era possível rastear o trajecto de cada telemóvel e portanto saber onde o dono esteve, tinha estado ou está e em que dia hora e minuto exactos, tendo sido assim que a CIA ou o FBI perseguiram um ferrabrás do estado islâmico, que depois abateram com o auxilio de um drone sobrevoando a Síria e comandado a partir de uma consola em Maryland, EUA, explicação que vi interrompida a pedido de um deles para explicar o que era um ferrabrás...

- Então é por isso que o FBI anda às turras com a BlackBerry, avançou o outro, ao que eu respondi sim mas não só, sei somente tratar-se de uma questão de direitos, direito à privacidade das comunicações, e algo mais, há ali com a BlackBerry qualquer coisa que não vos sei explicar cabalmente, e este cabalmente nada tem que ver com cabalos ou cabaleros gracejei.

Foi precisamente neste momento que o velho acabou de mastigar a torrada e, encaixando a queixada levantou-se derrubando a chávena o bule a caixa dos guardanapos e, alto como era largou de sua majestade um ronco grosso, cavernoso, até autoritário e, condescendente dirigiu-se-nos;


- Fui técnico na PT quando havia PT, desculpem meter-me na conversa mas reparei que de BlackBerry e de transmissões não pescam nada, por isso se me é permitido colmatar a vossa ignorância na matéria as coisas passam-se assim; 

enquanto em qualquer país qualquer PT está dependente do estado ou dos estados para funcionar, e da rede fixa e móvel, e em caso de alterações da ordem como as do passado recente no Egipto e em Londres as antenas foram colocadas inoperacionais, a BlackBerry não usa antenas nem rede móvel nem fixa que possam ser invadidas pelo exército e bloqueadas, nem precisa, nem tem fronteiras, nem está dependente dos estados, tem uma rede baseada em satélites geoestacionários que estado nenhum consegue cortar ou calar, é isso que a torna famosa, útil, prestável e faz desses telemóveis os mais caros claro, um satélite não é uma antenazinha por muito alta que seja, para o DAESH e qualquer rebelião o BlackBerry é a garantia de que ninguém cortará as transmissões, agora se faz favor paguem vocês o pequeno-almoço que esqueci a carteira em casa, amanhã apareçam que pagarei eu.

Ficámos todos banzados, os jovens olharam um para o outro, depois para mim e de novo um para o outro atrapalhados;

- Estamos desempregados os dois e o gajo comeu que nem um alarve caraças ! O tipo esteve a prepará-la e enfiou-nos a carapuça ! 

Vi logo que a coisa sobrava para mim, respirei fundo, alarguei a vista ao longo da avenida, lá ia ela agarrada e encostada ao braço do velho que já nem me pareceu tão velho, os cabelos adejando ao vento com o balançar de cabeça a cada passada dele, e aposto que um sorriso rasgado ajudando à digestão das torradas ao velho técnico da PT. Imaginem, fiquei mesmo pensando o que seria ferrar os dentes naquilo, quer a placa fosse normal quer fosse das esqueléticas…

Ah ! Zéza ! É que ele tratara aquilo docemente por Zézinha !