sábado, 13 de abril de 2013

139 - Seara ao Vento ...


Debalde tentei
Descansar 
Adormecer
Na noite voguei sonhando
Teus cabelos soltos
Qual seara ondulando
Sorriso alargado
Brilho nos olhos
Deux pommes de terre
Peau blanche
Um sinal de trânsito
Um triângulo invertido
Um cone
Sinalizando perigo, 
Ou clamando atenção
Cheiro a pistáchio
Sabor a morango
Uma criança lambendo um gelado
Tempestade 
Turbilhão
Um sonho divino, um desejo
Eu miúdo sorvendo os lábios
O esforço supremo, um esgar
Um corpo tombando para o lado
Uma dádiva
Um sorriso
Finalmente o sono
:)




sábado, 9 de março de 2013

138 - POSESSION / OBSESSION .........



Nunca antes, mas desde aquele dia sim, para mim foi o final, não aguentaria mais tanta indiferença


- será pecado o beijo ?

e questionava-se permanentemente numa blandícia matreira, mole, que me exasperava, quando eu, tantas vezes, sim amor tu mereces, eu compreendo-te, eu trato disso

enquanto o masoquismo, como vicio que a animava e a que eu fechava os olhos, tomava conta dela e, se tinha que ser ao menos fosse eu, que não era sádico, pois se por um lado evitava a queda da sua loucura nas mãos de um qualquer, ou que assim viesse a sofrer, ao menos fosse comigo que, arvorando um racionalismo compreensivo e paternalista mas simultaneamente soez, me vingava

vingava-me do será pecado o beijo que me travava as investidas sempre que, mais carinhoso e terno, procurava despertar nela interesse algum ou mesmo mínimo pelo baldaquino que em sua honra instalara na enorme sala de que fizera quarto

- nasci no pecado, sou filha do pecado

afiançava-me ela ajoelhada, de mãos postas, nos raros momentos em que algo ou alguma coisa a tomava, submetendo-a, num transe, hipnótico, não sei, do qual só se libertava se sossegada com o meu

- sim, sim amor eu trato disso, tu mereces e eu compreendo-te,

e a tomava, num sadismo que ela exigia fosse cumprido religiosa e ritualmente, após o que se acalmava, sossegava, até novamente exigir ser possuída por mim demoniacamente numa  perversão voluptuosa e lúgubre

- perdoa meu Deus perdoa em mim os pecados do homem eu que sou filha de pecadora e nasci e vivi em pecado perdoa Senhora perdoa Pai, em nome do Pai do Filho do Espírito Santo esta minha penitência, que cada sacrifício meu  aplaque os tumultos da minha existência e desta negra alma

ámen

e enquanto este transe lúbrico, de mãos fechadas num fervor desmesurado e lascivo sobre as enormes contas de rosário de um terço levado aos lábios minuto a minuto nos intervalos dos murmúrios me forçava, para aplacar a sua ânsia libidinosa e voraz a tomá-la, a possui-la quase ou como se a violasse e do estupro fizesse consequência para o seu sacrifício, a sua penitência, durante o que ela, em atitude e oração ofertava aos seus deuses ou demónios imaginários a expiação e imolação apaziguadoras da perturbação da suja alma

numa parede a xilogravura de Jesus, noutra, provavelmente do mesmo artista, uma invocando Nossa Senhora das Dores, à cabeceira uma cruz, nua, numa mesinha de cabeceira, e sempre à mão, o terço com incrustações de prata, na outra mesinha uma foto do noivo, falecido numa picada em Timor, vitíma de uma mina terrorista e pela morte do qual se culpava visto lhe ter sido infiel enquanto ele no mato, sobretudo por, descontados os fusos horários, nada a demover da certeza de ele ter morrido no exacto momento em que ela, nos antípodas, lançava um grito de lascívia numa pensão do Beato, perdida de amores por um boletineiro da Marconi, que a fez sentir-se impura e, para todo o sempre e ainda hoje se questionar

- será pecado o beijo ?

enquanto fazia de mim exorcista dos pecados de que não a culpava nem me cabia a mim expiar mas num turbilhão me arrastaram para o seu mundo imaginário e concentracionário, um mundo em que dor e castigo se conjugavam como atrozes carrascos e algozes de um amor luciferino que na ideia dela terá sido culpado pelo bizarro fim do noivo e de idílico noivado

- mete, tudo, todo, mete todo sem dor nem piedade, não mereço viver, força, à bruta, mete de repente, enfia tudo de uma vez, não pares, arranca-me os cabelos, castiga-me às tuas mãos, queima-me as entranhas, incendeia -me a boca a garganta, Senhor, expio os meus pecados Senhor, que o meu padecer purifique a minha alma e que nossa Senhora das Dores me encurte a vida e me alivie o sofrimento, quero morrer

e sentindo-se impura enforcava-se com o terço, enrolava-o nos seios ou enfiava-o entre as pernas ampliando a dor e o castigo e arrastando-me a mim nas mágoas duma expiação em que fazia de carrasco e de exorcista, eu, para quem o mundo girava já tão ao contrário que naquela tarde não me contive e no exacto momento em que ela gania debaixo de mim qual fêmea acossada pelo cio, lancei mão do pesado crucifixo na parede, ergui-o bem alto para que a pancada na nuca fosse fulminante e coincidente com a milésima de segundo em que o orgasmo me acometesse, e já pressentia na minha cara o esgar vingativo de um incubo sádico quando

uma aparição ante meus olhos tomou forma e ante mim, um incréu, se materializou uma Nossa Senhora de Fátima ou das Dores cuja luz me cegou e cujo braço susteve quando já em movimento descendente a estocada, e ainda hoje recordo o seu sorriso sereno, calmo, de pura paz, emanando um poder de sedução que me travou o golpe e envergonhou de tão ignomiosa acção

soltou um grito e libertou-se de mim, cruzou os braços sobre o rosto e ouvi-lhe num murmúrio perdão perdão perdão Deus Pai, enquanto enterrava a cabeça entre os joelhos e se encolhia a um canto

depositei com inacreditável tranquilidade e superstição o crucifixo sobre a cama, como que arrependido do brutal gesto que nos desgraçaria

mas o destino não marcara aquela hora, endireitei-me, respirei fundo para recuperar a serenidade e o domínio de mim, olhei à esquerda e à direita as xilogravuras nas paredes e jurei a mim mesmo enterrar ali os delírios selvagens que preenchiam os vazios da minha alma e nunca mais, até hoje, arranquei cabelos violei ou sovei quem quer que fosse,

olhei-a uma ultima vez, pareceu-me a incarnação do diabo
ela cegava-me, mas esqueci-a

olhei-a pelo espelho, tomava a bica a meu lado na Pérola da Sé, magra, sumida no hábito de freira, não a via há muito mais de trinta anos, não me reconheceu ou fingiu não me ver,  fiquei-lhe  agradecido, esquecera-a, esquecera-me de mim

hoje sei, o amor só medra noutras galáxias

ela fora a minha cocaína… 







sábado, 2 de fevereiro de 2013

137 - E QUANTOS ANOS VÃO ? … By Luísa Baião *



Vi-o ontem mesmo. Acabadinho de chegar de Havana e ainda com aquela cor morena ensaboada que só Cuba impregna na pele. Aliás a efusão do encontro foi mais para meu marido, de quem é amigo, que eu saiba de tempos anteriores ao meu nascimento. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 Não estava ébrio, não estavam para ser mais correcta, mas aquele ar bronzeado, o ar feliz e alegre de quem ainda teima em prolongar umas férias que adivinho maravilhosas, fizeram-me lembrar as noites calientes do Malecon, as cubanas e cubanos despidos de preconceitos, orgulhosos da sua cor, ébrios de vida, vidas vividas numa ilha paradisíaca.

 Naquela ilha, naquele passeio à beira-mar, caída a noite os nativos não escondem antes nos mostram porque é o beijo a parte mais importante de uma relação física entre dois seres. Porque é o beijo maravilhoso, como interage com o corpo do outro, umas vezes subrepticiamente outras podendo significar um mergulho no abismo da volúpia, quase uma viagem sem volta.

 Naquela ilha se aprende porque depois do amor, em nossos lábios pétalas de todos os matizes se agitam orvalhadas como brisa suspensa da delicadeza, por transitarmos em contramão pela fragilidade do outro. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 Também ele esse recém-chegado meu amigo, amigo de meu marido, cheirava ainda à névoa do mar das Antilhas, mar que naquele passeio, no Malecon, nos salpica.

 Não será por acaso que Cuba é considerada a pérola do Caribe. Ali naquele passeio dei uma vez por mim completamente encharcada, após ter admirado religiosamente uma gigantesca pintura mural do “Che” deixando-se vislumbrar numa das antigas casas coloniais que embelezam a cidade. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 Visitei cafés e ali provei do melhor, quase tão bom como o nosso Delta. Ali me deleitei com um charuto indígena que me enrolou os sentidos, sentidos que recuperaria numa instituição cubana que dá pelo nome de Cabaret Tropicana.

 E naquela ilha vi o mundo antes de mim, a época colonial espanhola, o Palácio do Governador, salvo erro e omissão agora o Museu de Arte Colonial, também vi o não menos célebre e polémico Museu da Revolução, carros de há cinquenta anos e um operário tomado de súbita emoção por ter constatado assombrado que tudo naquela mesa, garrafa, prato, facalhão, era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção, como teria dito Vinícius de Moraes.

 Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira. E claro, como não poderia ter deixado de ser visitei, visitámos na irreverência da idade La Bodeguita D’el Médio, sim essa a tal do Hemingway a quem igualmente erigiram um Museu. Resultado, uma ressaca só curada na Isla de la Juventud, a penitência auto imposta de atravessar acordada a Província de Pinar del Rio toda ela considerada património mundial pela Unesco, com final e recolhimento obrigatório no Convento de Stª Clara.

  Ali recuámos no tempo, visitámos a ilha do Papagaio, famosa por ter sido retiro e quartel-general de gente tão famosa como os piratas Francis Drake e Henry Morgan e, como se não bastasse tanta fama, ainda se diz ter sido essa ilha a inspiradora de Robert Louis Stevenson's em “ A Ilha do Tesouro”. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 No regresso, navegámos não no mesmo mas num outro Granma, por Bayamo, Baracoa. E num Cadilac descapotável dos anos cinquenta cortejámos Trinidad e Santiago de Cuba.

 Após tanta agitação o regresso foi mais moderado, há lembranças que não podemos arriscar serem maculadas com palavras, lembranças que uma atenção aproximada demais poderia danificar. Depois das festas, depois dos passeios, instala-se-nos no íntimo, quase sempre, um silêncio de museu. 

Toleram-se apenas os ruídos mais profundos que o silêncio, nada de barulhos excessivos, nada que incomode o suficiente, nada que invada os mistérios de cada um, é proibido tocar o sagrado de cada uma, para não profanar, p’ra não quebrar, p’ra que a magia e os recuerdos durem por muitos e muitos séculos.

 Esse nosso amigo perceberá tudo isto antes de lhe ter passado o bronze. A vida não é um poema de domingo. 


By Maria Luísa Baião, redigido na ‎quinta-feira, ‎28‎ de ‎Julho‎ de ‎2005, e muito provavelmente publicado no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER nos dias ou semana seguinte.

 

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

136 - PELO SIM, PELO NÃO..............




Ali estavam de novo naquela grande cidade. Raiana, diziam. Nunca como desta vez ela se sentira perdida, não fosse a companhia da mãe e da madrinha e de imediato teria feito marcha - atrás.
Tudo porque o Natal, na serra, lhe havia trocado as voltas. A agência de viagens garantira férias inolvidáveis.
Inolvidáveis.
Pois pois.
Até há algum tempo tinham na realidade sido inesquecíveis, depois, repentinamente, tudo mudara de figura e os sonhos virado pesadelo.
Nunca lhe ocorrera que tal poderia acontecer.
Doces recordações provocavam-lhe agora severos amargos de boca.
Esfumaram-se os sonhos e esfumou-se ele mal soube dos motivos de tanta aflição.
Nunca aquela cidade lhe parecera soturna, inóspita. As montras, que dantes percorria calma e demoradamente com um misto de alegria pelas compras antecipadas e prodigalizadas, não eram desta vez sequer olhadas.
Desta vez nem compras nem caramelos. Estava ali para cumprir uma decisão e só isso interessava. Só isso bastava. E sobrava.
Londres estava fora das suas capacidades. Além disso a dificuldade que todas experimentavam na língua contribuíra em muito para que essa metrópole de gentes, liberdades e democracia acabasse atirada para terceira possibilidade.
Fosse outro o motivo e não desdenharia, um fim-de-semana, ou dois ou três dias que fossem, seriam bastantes para trazer muito que contar.
O caso agora era diferente. Nem a ida a Badajoz era passeio, nem o motivo acarretava outras preocupações que não fossem esconder e calar.
Conhecera-o nas últimas férias.
O Natal, a serra, a paisagem, o ambiente, o ar de festa vivido.
Acreditara ter encontrado o homem dos seus sonhos. Fora um idílio curto mas arrebatador. Cheio de promessas, de planos prenhes de futuro e de vida.
Trocaram fotos e números de telefone, sorrisos, e-mail’s e odores, fluidos e amores.
Bruscamente tudo se toldara.
Telefones sempre inactivos, o correio electrónico sem dar sinal de vida, as promessas escoando por um buraco negro maior que a mentira em que acreditara.
Porquê?
Ela bem sabia porquê.
Contudo, não podia ter ficado calada. Não podia ter escondido.
O motivo era demasiado óbvio e sério para não ser partilhado, todavia o resultado, de todo inesperado, tinha sido o que ela menos intuíra e premeditara.
À primeira cai qualquer, à segunda só quem quer.
Quem a mandara ser tão parva assim ?
A madrinha bem lhe dissera para ter cautela pois que há devaneios que somente dissabores carreiam. Só agora via plenamente todo o alcance do sonho volvido pesadelo e que alimentara com o seu próprio calor, o seu próprio crer.
E a rua que procuravam e com a qual não davam ! Estavam ficando exasperadas. A hora marcada a aproximar-se e sem saberem se estavam perto se longe. A cidade um labirinto. Qual formigueiro em aceso alvoroço.
A rua ? Onde fica o raio da rua ? E a Clínica ! Onde está o raio da clínica ?
Perguntem a essa senhora !
Aqui não posso parar !
Ai Deus no que eu me meti !
A madrinha criticara-a, não se evoca o nome do Senhor em vão.
A mãe, mais complacente e compreendendo a sua angústia perdoara-lhe. Perdoara-lhe tudo. Afinal estavam ali também por vontade sua.
Finalmente a rua ! O número indicado !
Mesmo em cima da hora !
Tudo foi feito num ápice mas profissionalmente. Como que a correr. Mas com todas as condições possíveis e imagináveis. Segurança, assepsia, apoio psíquico.
Sem dor, sem par, sem igual.
Eram horas de voltar. Já ali não faziam nada. Não tinham ido a compras, ademais todas tinha que estar em Évora ao anoitecer.
Um dos muitos movimentos defensores do “sim à vida”, de que faziam parte e do qual era a alma que o animava reclamava a sua presença.
Não podia faltar.
Não podia desiludir ninguém.
Abetardas, estorninhos, cegonhas, linces e morcegos eram também com ela.
Amava os animais.
Pelo sim pelo não atestaram o depósito do automóvel que estava a meio, não fossem ficar pelo caminho, até porque a gasolina, tudo, era ali muito mais acessível e barato. 

Fonte :  Maria Luisa Figueiredo Nunes PB - Verão - 2002

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

ÉVORA, ÉVORA ERA MAIS, MUITO MAIS.......


135 - ÉVORA, ÉVORA ERA MAIS, MUITO MAIS.......


Enquanto a água corria na banheira e me escanhoava, o vapor adensava-se e, no espelho, não já eu de espuma branca na cara, qual Pai Natal, mas um outro, perdido em divagações, sobras de um passeio dominical pelas ruas solarengas da urbe, moribunda, que nem esta quadra animou.

As ruas, que outrora um caudal de gente animava, são agora desolação e abandono, porta sim porta não, quando não porta sim porta sim, um comércio fechado, uma habitação devoluta, painéis garridos, “trespasse”, “venda”, “aluguer”, que não logram apesar do agressivo colorido, quem lhes responda.

A cidade perde identidade a galope, tem vindo a descaracterizar-se em céleres passos de caracol, sobra-lhe agora em indiferença o que dantes lhe faltava em solidão. Nem a brancura ou o asseio são já apanágios seus mas, como diz o adágio, mal não há que sempre dure nem bem que jamais se acabe.

Aguardemos, aguardemos e oremos, sentados.  

E aqui onde vou agora era o “Augusto Cabeça Ramos”, ali o “ J. J. Gonçalves”, sim, porque dantes as firmas e as lojas eram pessoas e tinham pessoas, com quem tratávamos olhos nos olhos. Ali, onde o chinês, dantes o “Archiminio Caeiro Ldª”, naqueloutro chinoca a “Mafeuropa Ldª” Máquinas E Ferramentas Da Europa, uns passos adiante a antiga “CUF”, quase pegada ao Turismo.

Derivando para “Alconchel” o “H. Vaultier Ldª” e já esta abaixo, igualmente tomada pelas forças do mandarim, a inexistente “ Angelino & Figueiredo”, e tantos, tantos outros que povoavam a cidade, tais como o “Raul Cruz Sucs”, a “ Casa Valadas; lubrificantes correias vedantes e outros utensílios úteis para uma lavoura moderna “, logo pegada a “Kermesse de France , Phragrancias de Europa para a mulher ideal“, assim mesmo, com ph, montra em vidro negro biselado a dourado decerto da mesma idade, dois passos adiante o J. B. Andrade que fechou sem deixar saudade,

ainda hoje recordo tudo menos a mulher ideal, que nunca conheci, se me gravou na mente quando do meu exame de acesso à escola preparatória e nunca mais, casei com uma santa mas a mulher ideal nunca, ainda hoje sonho conhecê-la, não passa de um sonho, já nessa época a Europa só sonhos, e a única verdade que lembro é a mesma senhorinha linda que desde esse exame segurava  o leme ao balcão da loja, magra como um fuso e elegante que nem bailarina de can-can,

            Paris, loucura, anos vinte, “Casa phundada em 1927”, ta explicada a coisa, a coisa e o estilizado novecentista de uns lábios e de umas pernas no vidro da montra e cujo significado demorei  séculos a entender, os lábios retintos de vermelho da velhinha, 
teria sido bailarina ? aprumada, arranjada, linda, já não há velhinhas assim, um dia plof e a loja para trespasse, mais uma… 

Adiante o “Benjamim e Cª”, o Manuel das lãs, os manos “Silva & Irmãos Ldª” import export, o “Fernando dos Prazeres Filhos e Sucs Ldª“, e tantos a quem já nem a lembrança lhes vale. E podia passear-se pela cidade no meio de toda esta gente, falar-lhes, tratar com ela, argumentar e contra argumentar, ir-lhes à cara se necessário. Os dinheiros guardávamo-los no “Banco do Alentejo”, os seguros na mão da “Pátria, Cª Alentejana de Seguros”, e, em caso de reclamação tínhamos à nossa frente quem, e não um número verde, azul ou vermelho para onde ligar. 

Havia sempre um balcão onde nos encostarmos e bater o punho, e não um “sítio” indeterminado num ainda mais indeterminado e invisível lugar. Éramos enganados com uma palmadinha nas costas e um sorriso nos lábios por gente com quem nos cruzávamos todos os dias e não por tubarões petulantes e arrogantes, nem por empregados empertigados como o gerente bracarense do Santander, como hoje somos, porque dantes de Espanha só os caramelos de Badajoz, e empertigados só os “Fidalgos” e os “Janotas” por lhes ser apelido de família, ou os forcados, porque enfrentar uma fera lhes fazia e faz crescer um rei na barriga.

Hoje empresários invisíveis têm ao seu serviço rapariguinhas de shopping piores que as que Rui Veloso pintou há trinta anos, e capatazes, manageros ou lacaios como nunca houve, ignorantes mas convencidos, cuja soberba ou travamos logo à primeira investida ou vomitam todas as alarvidades que os cursos de formação e de gestão de desempenho lhes meteram no bucho sem lhes darem tempo para os ruminarem.  

Gosto da minha cidade, mas nunca mais as centenas de camionetas cheias de gente como quando o “Juventude” e o “Lusitano” defrontavam o “Benfica” e o “Sporting”. A seguir ao “Vingt-cinq de Avril” os tractores e “roulottes” da luta agrária ainda uns lamirés mas nada que se parecesse sequer...

Depois as pessoas foram abandonando a cidade que os políticos chamaram a si, e foi o desastre completo. Hoje, nem cidade nem pessoas nem políticos mas tão somente uma excelente cagada.

Nem já um vómito é.

E cegos teimam ver o que ninguém mais alvitra enxergar.

A cidade fechará para obras mais vinte, trinta, quarenta ou cinquenta anos, até que as moscas abalem e as pessoas regressem, repovoem o povoado, e então de novo os nomes nas fachadas, em Itálico, Courier New, Times New Roman, Gothic ou Garamond, novamente a cidade pululará de viço, as ruas dos mercadores, dos lagares, dos caldeireiros e da moeda regurgitarão de gentes e eu, satisfeito c’o meu oráculo, continuarei indolente, sete palmos de terra por cima, dormindo o sono dos justos no cemitério dos Remédios.

Sem remédio.


:P