quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

136 - PELO SIM, PELO NÃO..............




Ali estavam de novo naquela grande cidade. Raiana, diziam. Nunca como desta vez ela se sentira perdida, não fosse a companhia da mãe e da madrinha e de imediato teria feito marcha - atrás.
Tudo porque o Natal, na serra, lhe havia trocado as voltas. A agência de viagens garantira férias inolvidáveis.
Inolvidáveis.
Pois pois.
Até há algum tempo tinham na realidade sido inesquecíveis, depois, repentinamente, tudo mudara de figura e os sonhos virado pesadelo.
Nunca lhe ocorrera que tal poderia acontecer.
Doces recordações provocavam-lhe agora severos amargos de boca.
Esfumaram-se os sonhos e esfumou-se ele mal soube dos motivos de tanta aflição.
Nunca aquela cidade lhe parecera soturna, inóspita. As montras, que dantes percorria calma e demoradamente com um misto de alegria pelas compras antecipadas e prodigalizadas, não eram desta vez sequer olhadas.
Desta vez nem compras nem caramelos. Estava ali para cumprir uma decisão e só isso interessava. Só isso bastava. E sobrava.
Londres estava fora das suas capacidades. Além disso a dificuldade que todas experimentavam na língua contribuíra em muito para que essa metrópole de gentes, liberdades e democracia acabasse atirada para terceira possibilidade.
Fosse outro o motivo e não desdenharia, um fim-de-semana, ou dois ou três dias que fossem, seriam bastantes para trazer muito que contar.
O caso agora era diferente. Nem a ida a Badajoz era passeio, nem o motivo acarretava outras preocupações que não fossem esconder e calar.
Conhecera-o nas últimas férias.
O Natal, a serra, a paisagem, o ambiente, o ar de festa vivido.
Acreditara ter encontrado o homem dos seus sonhos. Fora um idílio curto mas arrebatador. Cheio de promessas, de planos prenhes de futuro e de vida.
Trocaram fotos e números de telefone, sorrisos, e-mail’s e odores, fluidos e amores.
Bruscamente tudo se toldara.
Telefones sempre inactivos, o correio electrónico sem dar sinal de vida, as promessas escoando por um buraco negro maior que a mentira em que acreditara.
Porquê?
Ela bem sabia porquê.
Contudo, não podia ter ficado calada. Não podia ter escondido.
O motivo era demasiado óbvio e sério para não ser partilhado, todavia o resultado, de todo inesperado, tinha sido o que ela menos intuíra e premeditara.
À primeira cai qualquer, à segunda só quem quer.
Quem a mandara ser tão parva assim ?
A madrinha bem lhe dissera para ter cautela pois que há devaneios que somente dissabores carreiam. Só agora via plenamente todo o alcance do sonho volvido pesadelo e que alimentara com o seu próprio calor, o seu próprio crer.
E a rua que procuravam e com a qual não davam ! Estavam ficando exasperadas. A hora marcada a aproximar-se e sem saberem se estavam perto se longe. A cidade um labirinto. Qual formigueiro em aceso alvoroço.
A rua ? Onde fica o raio da rua ? E a Clínica ! Onde está o raio da clínica ?
Perguntem a essa senhora !
Aqui não posso parar !
Ai Deus no que eu me meti !
A madrinha criticara-a, não se evoca o nome do Senhor em vão.
A mãe, mais complacente e compreendendo a sua angústia perdoara-lhe. Perdoara-lhe tudo. Afinal estavam ali também por vontade sua.
Finalmente a rua ! O número indicado !
Mesmo em cima da hora !
Tudo foi feito num ápice mas profissionalmente. Como que a correr. Mas com todas as condições possíveis e imagináveis. Segurança, assepsia, apoio psíquico.
Sem dor, sem par, sem igual.
Eram horas de voltar. Já ali não faziam nada. Não tinham ido a compras, ademais todas tinha que estar em Évora ao anoitecer.
Um dos muitos movimentos defensores do “sim à vida”, de que faziam parte e do qual era a alma que o animava reclamava a sua presença.
Não podia faltar.
Não podia desiludir ninguém.
Abetardas, estorninhos, cegonhas, linces e morcegos eram também com ela.
Amava os animais.
Pelo sim pelo não atestaram o depósito do automóvel que estava a meio, não fossem ficar pelo caminho, até porque a gasolina, tudo, era ali muito mais acessível e barato. 

Fonte :  Maria Luisa Figueiredo Nunes PB - Verão - 2002

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

ÉVORA, ÉVORA ERA MAIS, MUITO MAIS.......


135 - ÉVORA, ÉVORA ERA MAIS, MUITO MAIS.......


Enquanto a água corria na banheira e me escanhoava, o vapor adensava-se e, no espelho, não já eu de espuma branca na cara, qual Pai Natal, mas um outro, perdido em divagações, sobras de um passeio dominical pelas ruas solarengas da urbe, moribunda, que nem esta quadra animou.

As ruas, que outrora um caudal de gente animava, são agora desolação e abandono, porta sim porta não, quando não porta sim porta sim, um comércio fechado, uma habitação devoluta, painéis garridos, “trespasse”, “venda”, “aluguer”, que não logram apesar do agressivo colorido, quem lhes responda.

A cidade perde identidade a galope, tem vindo a descaracterizar-se em céleres passos de caracol, sobra-lhe agora em indiferença o que dantes lhe faltava em solidão. Nem a brancura ou o asseio são já apanágios seus mas, como diz o adágio, mal não há que sempre dure nem bem que jamais se acabe.

Aguardemos, aguardemos e oremos, sentados.  

E aqui onde vou agora era o “Augusto Cabeça Ramos”, ali o “ J. J. Gonçalves”, sim, porque dantes as firmas e as lojas eram pessoas e tinham pessoas, com quem tratávamos olhos nos olhos. Ali, onde o chinês, dantes o “Archiminio Caeiro Ldª”, naqueloutro chinoca a “Mafeuropa Ldª” Máquinas E Ferramentas Da Europa, uns passos adiante a antiga “CUF”, quase pegada ao Turismo.

Derivando para “Alconchel” o “H. Vaultier Ldª” e já esta abaixo, igualmente tomada pelas forças do mandarim, a inexistente “ Angelino & Figueiredo”, e tantos, tantos outros que povoavam a cidade, tais como o “Raul Cruz Sucs”, a “ Casa Valadas; lubrificantes correias vedantes e outros utensílios úteis para uma lavoura moderna “, logo pegada a “Kermesse de France , Phragrancias de Europa para a mulher ideal“, assim mesmo, com ph, montra em vidro negro biselado a dourado decerto da mesma idade, dois passos adiante o J. B. Andrade que fechou sem deixar saudade,

ainda hoje recordo tudo menos a mulher ideal, que nunca conheci, se me gravou na mente quando do meu exame de acesso à escola preparatória e nunca mais, casei com uma santa mas a mulher ideal nunca, ainda hoje sonho conhecê-la, não passa de um sonho, já nessa época a Europa só sonhos, e a única verdade que lembro é a mesma senhorinha linda que desde esse exame segurava  o leme ao balcão da loja, magra como um fuso e elegante que nem bailarina de can-can,

            Paris, loucura, anos vinte, “Casa phundada em 1927”, ta explicada a coisa, a coisa e o estilizado novecentista de uns lábios e de umas pernas no vidro da montra e cujo significado demorei  séculos a entender, os lábios retintos de vermelho da velhinha, 
teria sido bailarina ? aprumada, arranjada, linda, já não há velhinhas assim, um dia plof e a loja para trespasse, mais uma… 

Adiante o “Benjamim e Cª”, o Manuel das lãs, os manos “Silva & Irmãos Ldª” import export, o “Fernando dos Prazeres Filhos e Sucs Ldª“, e tantos a quem já nem a lembrança lhes vale. E podia passear-se pela cidade no meio de toda esta gente, falar-lhes, tratar com ela, argumentar e contra argumentar, ir-lhes à cara se necessário. Os dinheiros guardávamo-los no “Banco do Alentejo”, os seguros na mão da “Pátria, Cª Alentejana de Seguros”, e, em caso de reclamação tínhamos à nossa frente quem, e não um número verde, azul ou vermelho para onde ligar. 

Havia sempre um balcão onde nos encostarmos e bater o punho, e não um “sítio” indeterminado num ainda mais indeterminado e invisível lugar. Éramos enganados com uma palmadinha nas costas e um sorriso nos lábios por gente com quem nos cruzávamos todos os dias e não por tubarões petulantes e arrogantes, nem por empregados empertigados como o gerente bracarense do Santander, como hoje somos, porque dantes de Espanha só os caramelos de Badajoz, e empertigados só os “Fidalgos” e os “Janotas” por lhes ser apelido de família, ou os forcados, porque enfrentar uma fera lhes fazia e faz crescer um rei na barriga.

Hoje empresários invisíveis têm ao seu serviço rapariguinhas de shopping piores que as que Rui Veloso pintou há trinta anos, e capatazes, manageros ou lacaios como nunca houve, ignorantes mas convencidos, cuja soberba ou travamos logo à primeira investida ou vomitam todas as alarvidades que os cursos de formação e de gestão de desempenho lhes meteram no bucho sem lhes darem tempo para os ruminarem.  

Gosto da minha cidade, mas nunca mais as centenas de camionetas cheias de gente como quando o “Juventude” e o “Lusitano” defrontavam o “Benfica” e o “Sporting”. A seguir ao “Vingt-cinq de Avril” os tractores e “roulottes” da luta agrária ainda uns lamirés mas nada que se parecesse sequer...

Depois as pessoas foram abandonando a cidade que os políticos chamaram a si, e foi o desastre completo. Hoje, nem cidade nem pessoas nem políticos mas tão somente uma excelente cagada.

Nem já um vómito é.

E cegos teimam ver o que ninguém mais alvitra enxergar.

A cidade fechará para obras mais vinte, trinta, quarenta ou cinquenta anos, até que as moscas abalem e as pessoas regressem, repovoem o povoado, e então de novo os nomes nas fachadas, em Itálico, Courier New, Times New Roman, Gothic ou Garamond, novamente a cidade pululará de viço, as ruas dos mercadores, dos lagares, dos caldeireiros e da moeda regurgitarão de gentes e eu, satisfeito c’o meu oráculo, continuarei indolente, sete palmos de terra por cima, dormindo o sono dos justos no cemitério dos Remédios.

Sem remédio.


:P 






sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

134 - ACESSO INTERDITO ...........



SONHO EM ESPIRAL


Lembranças matam

Saudades doem

Enquanto penso em ti
no calor dos sonhos
em que te abraço
te puxo para mim
te enlaço com as pernas
te beijo
me colo a ti
te digo ao ouvido quanto te quero
e te desejo
e te sussurro o meu amor

Nós em conchinha
o desejo aumentando
nós dentro dele.......
e de um sonho 

Sim

de um sonho

sim juntinhos

de modo que te escute o coração

sinta o teu peito bater

descompassado

nele me perca enlouquecido


Mordiscando-te os biquinhos com os lábios
a língua titilando-os e tu
numa ânsia maior que a minha
amarfanhas-me os cabelos
e, de amor enraivecida
empurras-me p'ra baixo
onde te queima o desejo
a urgência

O macio das tuas coxas nas minhas faces
o teu cheiro a Eva
o sabor agridoce do fruto proibido
minha língua de novo
encantamento
estertor
estremeção


Arquejamos
e, antes da agonia puxas-me para cima
soergo-me
deslizo sobre ti
procuro-te
a língua ansiosa


E
enquanto nos beijamos

Escorregadia

Para dentro de ti deslizo
devagar
devagarinho

Tu
braços e pernas num abraço
exiges-me
e eu
frenético
penetro-te docemente

Possuído
possuis-me
escoo-me em ti
em volúpia partilhada
lascivos
cúmplices

E
ternamente
deixamo-nos adormecer
um só
fundidos
perdidos
perdidamente




segunda-feira, 26 de novembro de 2012

133 - O MEU 25 DE NOVEMBRO ...............................


  
Escassos meses após a eclosão do 25 de Abril tinha já fortemente inoculado, como devem calcular, o vírus da liberdade que a todos (?) contagiou, e mesmo que assim não tivesse sido decerto não teria resistido muito mais tempo ao contágio.

O golpe das Caldas, poucos dias antes, dera-me para bons presságios, o livro “Portugal e o Futuro”, do general Spínola, ainda que lido à pressa, só confirmara as minhas impressões e agoiros, as conversas de sindicato, a tertúlia da época apesar da situação condicionada em que se vivia, tinham feito germinar em mim alguma sensibilidade política, e as leituras do Jornal do Comércio e do Jornal do Funchal, menos corroídos pelo lápis da censura, permitiam-me elaborar sobre a situação que se vivia um mosaico mais próximo da realidade. Como muitos jovens de então habituara-me a ler nas entrelinhas dos jornais, lia muito, nada escapava, revistas e livros permitidos, pois os proibidos, esses, eram ávidamente procurados, trocados, emprestados, lidos, digeridos, comentados e secretamente publicitados.

Melhor teriam feito Salazar e Caetano se tivessem pura e simplesmente esquecido o “índex”, a proibição de determinados autores e obras só as tornava mais apetecidas, veja-se o contraste com os dias e em especial com os jovens de hoje, que com toda a liberdade disponível, a que poderão somar todo o tempo do mundo, pura e simplesmente não pegam em leitura nenhuma, de modo que não obstante as condições de liberdade de que desfrutam, são no aspecto político, de longe muito mais ignorantes que os da minha geração. (As estatísticas o confirmam, eu somente me limito a lembra-lo).

Apesar da minha oposição à guerra colonial que se travava nas três frentes de África, que poderia, a exemplo de muitos amigos meus, ter-me tornado parte da comunidade portuguesa em França, ou na Holanda, eram os “Fuzileiros” a força que consciente ou inconscientemente alimentava os meus sonhos de jovem, daí que com expressa autorização paterna tivesse ingressado na Marinha, onde assentei como voluntário mal tinha acabado de fazer os meus dezoito anos.

Marinha significava Lisboa, aventura, viagens, mundo, e por aqueles dias a capital era um verdadeiro caldeirão borbulhante, um autêntico vulcão de movimentações políticas, pelo que os meses que se seguiram ao 25 de Abril foram de intensa actividade, manifestações, comícios, golpes e contra golpes, tendo eu passado por tudo isto enquanto militar, e participado mesmo em algumas acções como o 28 de Setembro, o 11 de Março, e por centenas de " manif’s " a que perdi o conto, dezenas de reuniões de soldados e marinheiros, e digerido em passo de corrida toda a cartilha da esquerda à extrema-esquerda.

Uma vez consegui mesmo mobilizar quatro ou cinco autocarros pejados de fuzileiros, que se deslocaram a Évora, para apoiar não sei que manifestação de operários e camponeses alentejanos, certamente vez única em que a esta cidade foram dados a ver de uma vez só tantos “filhos da escola”, ou da “Briosa”. Diga-se em abono da verdade que no café Arcada não coubemos todos à uma, pelo que tivemos que aguardar vez, em fila, como já era hábito fazermos nos refeitórios das unidades e das bases de onde viéramos. Nunca tantas gaivotas tinham sido vistas em terra, ainda por cima tão longe do mar.

A injustiça para com o Chile e Salvador Allende estava viva no espírito de todos, pelo que havia que evitar em Portugal, idênticas manobras, o que significava que ao menor alarme aí estavam os soldados e marinheiros, filhos do povo, disponíveis, armados e gritando; “a reacção não passará”, “soldados unidos vencerão”, “o povo unido jamais será vencido”, e tantas outras palavras de ordem que fizeram escola e ficarão para sempre gravadas na memória de tantos de nós.

Nem sei como tantas dessas manifestações e tantos dos controlos de pessoas e viaturas não redundaram em mais mortes, foi puro milagre, já que o mínimo incidente era suficiente para gritar; reaccionário ! E atirar a matar, pois as armas, essas, na época andavam quase sempre connosco, à bandoleira. Mas o 25 de Novembro só o entendi passadas mais de duas décadas, o que não obstou que tivesse nesse dia, generosamente, disponibilizado a minha pessoa, e a minha vida, para lutar pela revolução que nos tragava.

Eu, e tantos outros como eu, creio sinceramente não termos percebido na altura qual o lado correcto a defender. Confiava-se nas chefias, pronto, chefias essas que manobravam nos bastidores os cordelinhos da política, que a dominavam, ocupavam, que ditavam o percurso do poder, sempre ou mais que nunca ondulando como as bandeirinhas, que mudavam com a mesma facilidade com que o vento muda de sentido, e que dispunham de nós, a seu bel-prazer, quais peões num tabuleiro de xadrez. Só mais tarde percebi o verdadeiro significado da expressão “carne para canhão”, e muito mais tarde ainda entendi porque não recrutam homens já feitos e maduros, antes jovens, tão generosos quão ignorantes da verdadeira razão por que procurarão a honra, serão patriotas ou darão as próprias vidas por causas quantas vezes a léguas dos seus princípios.

Pelo que, animado de tão justos propósitos, eu e mais cerca de cem camaradas de armas oriundos de diversos aquartelamentos e companhias, passámos o dia fatal na “Casa do Marinheiro”, ali para a Rua do Arsenal, armados até aos dentes, tudo acompanhando pela rádio e Tv, e pelas comunicações vindas do nosso comando, nervosos, fumantes, expectantes, na perspectiva de entrarmos em acção, em combate, e só noite dentro, por ordens sensatas do comandante e Almirante Rosa Coutinho, mais conhecido por “Almirante Vermelho”, desmobilizámos e regressámos aos quartéis.

Pergunto-me muitas vezes a mim mesmo que teria sido de mim e dos meus companheiros, se a sensatez desse Almirante não tivesse prevalecido ? Há mesmo quem afirme ter sido medo do confronto, já que na realidade era o poder que estava em causa, o governo da nação, a viragem de rumo, a continuidade ou a morte da revolução e o encarreirar nos trilhos da democracia.

Quantos de nós teríamos tombado ?  Quantos camaradas teriam morrido ?
Porquê ? Que democracia interrogo-me agora.
Por que causa ignorada ?

Sim, porque no reboliço dessa época, saber se a nossa causa era a justa, era tão fácil como hoje desvendar a chave do totoloto, estava-se com um lado ou com outro, como calhava estar-se no passeio esquerdo ou direito de uma qualquer rua.

Por sorte ou por mero acaso uns venceram, mas, tendo vivido a febre por dentro, ainda hoje acredito que só por casualidade tal aconteceu, só por isso.


Ou por medo...  

P.S. – Texto já anteriormente publicado no jornal Diário do Sul,  em Novembro de 2000 - Évora



sábado, 17 de novembro de 2012

132 - TITANIC ...............................



A insónia ferrava-me e, para a contrariar, levantei-me de um ímpeto, corri à sala, aticei os borrões da lareira, enrolei-me na manta da gata e estendi-me no sofá, controlo na mão, zapando até que a National Geographic me fixou as órbitas e a atenção na saga do Titanic, recém descoberto após décadas de segredo no fundo do mar…

O narrador acompanhava as imagens com indolência, essa coisa que me devia ter deixado na cama, mas, em vez do quentinho, ante mim o fundo do mar gelado e os destroços do maior navio do mundo, a festa a bordo, o capitão Edward John Smith, que numa heresia desafiadora jurou estar ao leme de uma nave inafundável e acabou indo ao fundo com ela…

O resto sabemos há muito. O iceberg, o embate, o rasgão, o inundar do formidável paquete, o drama que foi o naufrágio, o mais de milhar e meio de mortos naquelas águas geladas…

Na transmissão tecnologicamente avançada que acompanha a descida às profundezas vejo, sob a luz dos holofotes, os restos da imponente e luxuosa heresia que nem uma semana durara.

Quanto mais o submersível descia e me espantava com imagens nunca vistas, mais a memória me submergia em recordações de infância, no temor a Deus, nas palavras evangélicas de D. Feverónia, na justiça humana do padre Manso, e nas imagens do meu catecismo, testemunho de um Deus vingativo, colérico, cujo código repressivo me tirava o sono e atormentava pelo receio do pecado e do castigo.

O lado bom desse deus viria pela mão do meu mano, meia dúzia de anos a mais que eu, precocemente atirado para o Seminário de Vila Viçosa e cujos desenhos, fruto da sua imaginação, fé ou doutrinação, mas sobretudo da sua paixão e gosto p'lo traço, p'las cores, e me mostrava, num caderninho exemplar, de ilustrações em muito, ou em tudo, superiores às imagens violentas do meu catecismo e que, em simultâneo com a sua voz segura, pausada e amena como só Deus por certo terá, me aplacava os medos a que os meus sete ou oito anos não logravam furtar-me.

Nos seus desenhos Deus era um triângulo colorido rodeado de raios de sol e um olho no meio, que tudo via, a tudo acudia, omnipresente e sempre determinado a proteger-nos, proteger-me do avanço melífluo de Satanás.

Um Deus tri, uno, Pai, Filho e Espírito Santo, ante mim pela primeira vez uma representação do património imaterial da humanidade, do imanente, do que nos transcende mas completa, a tradição, a cultura, o pensamento, o ego, a alma, como pode alguém há tantos séculos ter-nos pensado dessa forma tridimensional ? É uma e meia da manhã de dezoito de Novembro do ano da graça de 2012, sorrio para mim mesmo, curioso que nunca tivesse meditado nem vagamente nisto, terão os deuses sido astronautas ? (sorri Luís agora é a tua vez).

Numa outra página do caderno, igual às anteriores, toda ela cores, uma serpente, a célebre maçã, a tentadora árvore, Adão e Eva, nuvens lindas esbranquiçadas, suaves, tornando leve o céu e encantador, o futuro puro e risonho, ou não vivêssemos na devoção e entrega a Deus.

Ainda hoje não é clara para mim a razão pela qual o mano abandonou o seminário. E, literalmente não posso afirmar se a experiência o marcou (1) ou como o teria marcado. Do universo supostamente concentracionário dos seminários tenho uma visão muito redutora que nem Vergílio Ferreira nem Aquilino Ribeiro me alargaram. (2)

Sei-o um homem bom, com qualidades, ainda que o conheça melhor pelo que cala, pelo que não diz.

É pessoa de poucas falas, mas convincente, adora acompanhar com as mãos os diálogos se emocionado, gesticulando, manipulando-as, olhando-as enquanto fala. É generoso, autêntico, e raramente não convencerá da bondade dos seus argumentos o mais cauteloso.

Um único defeito lhe reconheço, a tolerância, cresce-lhe na razão inversa da necessidade do seu uso.

Contrastando vincadamente com o caderninho bem o recordo, no catecismo um céu ameaçador, o dedo de Deus afundando os hereges do negro Titanic, enquanto no caderno do mano a Arca de Noé brilhando ao sol, plena de animais, de cor, de vida, numa cena anímica que nem Miguel Ângelo teria desenhado nem colorido tão bem. O mar aplacado, azulão, como só uma boa ventura o pintaria, o astro cálido, cintilante, nuvenzinhas como bibelôs, e, num canto superior do desenho a esperança, a bondade, a paz. Uma pomba branca crescendo para nós, ramo de oliveira no bico, Deus é grande, Deus é amor, Deus é cor…

Naquela tarde, 6 de Agosto, dia da Transfiguração de nosso Senhor Jesus Cristo, trovejava, as grossas bátegas de água, os trovões, mas sobretudo os fulgores dos relâmpagos, quase tão ferozes como os que no catecismo tudo fulminavam, fizeram debandar a rapaziada brincando no largo da vila.

Para ser sincero antes do ribombo do terceiro trovão já o Rui distribuía lambadas e ordenava a retirada, anafado, voz grossa, vinda de um arcabouço com o dobro do tamanho das pernas, numa atitude autoritária digna do pai, cabo da GNR e chefe de posto, coisa que naqueles tempos era normal… a autoridade transmitia-se… não podia cair no chão e muito menos em “más” mãos…

O Assudinha foi o primeiro a fugir, depois o Peixe, o Félix, o Fonte Boa, o Tanita, o Ângelo, sumiram-se num repente, um nos urinóis públicos, outro na cantina escolar, outro ainda escondido nas portadas do altar que flanqueava a igreja, os restantes distribuíram-se por cada uma das quatro tabernas que o largo acoitava e eu, o mais assustado de todos, refugiei-me na igreja e, de mãos postas, pé ante pé, aproximava-me do altar quando discerni pelo inusual do confessionário aberto, D. Feverónia, ajoelhada perante o padre Manso, soluçando intensamente, enquanto ele, bonacheirão mas aflito, olhos esbugalhados, a cara num esgar, numa careta, mãos fincadas na cabeça da pecadora, certamente lutando para dela expulsar os demónios, ao ver-me, irado e de dedo em riste me apontou a porta e me expulsou do templo numa cena digna do catecismo que D. Feverónia na sua aflição abandonara caído no chão.

Fugi a sete pés da ira do padre e, em minha casa continuei o susto, uma casa grande, de tectos altos e janelas ainda mais altas a que nem um homem alto chegaria, o que me fazia sentir mais pequeno ainda do que na realidade era.

Durante uma boa meia dúzia de anos não entendi a reacção desmedida do pacífico padre Manso, muito menos a aflição da minha catequista, toda ela por natureza calma, toda ela bondade, toda ela castidade, toda ela sorrisos.

Não entendi até que minha prima Miquelina(3) me tivesse encontrado e surpreendido numa egoísta atitude onanista, deliciado comigo mesmo, escondido atrás das sacas de alfarroba no armazém dos Assudas, se ajoelhou para mim que de surpreendido passei a estupefacto, depois a cúmplice, até que os olhos se me desvairaram, a cara num esgar, num segundo retesei o corpo enquanto lhe segurava os cabelos com a mesma ânsia que nos seguramos aflitos à crina de um cavalo, um estremeção, um gemido… o corpo retornando ao primitivismo fetal, até que finalmente a paz…  

a Miquelina limpando-se, nunca reparara como tinha a boca linda, carnuda, entreolhámo-nos comprometidos e pecadores, por fim entendi o que durante anos não entendera, e prenda de anos não teria sido porque só na semana seguinte faria os quinze.

D. Feverónia entregara-se à catequese, dedicara-se a Deus e a tomar conta de um oratório da Sagrada Família que semanalmente passava de casa em casa, a fim de abençoá-la, forçando-se deste modo a asfixiar um desgosto sofrido há uma dúzia de anos e na flor da sua idade. Ficara sem o marido, abatido a tiro numa noite de lua nova, no mesmo dia em que pela manhã o padre Manso lhe tolhera os passos no largo e lhe assentara duas galhetas que o haviam deitado por terra. Valeu ao padre o álibi irrefutável de, à hora do tiroteio, se encontrar a oito quilómetros, numa paróquia contígua, oficiando uma Novena.

O padre Manso nada tinha de manso, como constatarão na sua apreciação. Uma única vez lhe gabei o autoritarismo divino que a todos amedrontava. Indo eu para a escola, manhã cedo, e amontoando-se os homens no inclinado e estreito passeio que ladeava a igreja, aguardando o ajuste pelos feitores das herdades circunvizinhas, que lhes ditariam a jorna e o seu valor naquele dia, um dos feitores, conhecido pelo “Caga Notas”, envolveu-se num desacato que o cabo da GNR tomou como seu no mero intuito de lhe agradar, mas que acabou por indignar o padre Manso.

Não entendi o diferendo que opôs o padre ao pai do Rui, divisei de longe apenas um homem caído aos pés da “autoridade”, o padre estugando o passo, vermelho de cólera e gritando ao cabo da guarda que, ao retorquir, nem tempo teve para levantar o braço e proteger-se, encaixando duas das célebres galhetas do padre, que mais pela vergonha que pela dor o levaram a puxar do revolver, mas não antes que o padre lhe tivesse oferecido as mãos em jeito de receberem algemas, e lhe ter gritado e agora prenda-me se tiver tomates e for homem para isso !

O cabo, mais roxo que a túnica do Senhor dos Passos enfiou-se na taberna, e, (ouvi ao meu pai em casa ao jantar), dizia-se que caído de bêbedo, tudo e todos tendo ameaçado de morte, pistola na mão, e em especial aquele padre de merda, protegido do Bispo de Évora, (o reverendíssimo D. Manuel Trindade Salgueiro), mas que não perderia em esperar pela demora, pois protegido ou não havia de pagar-lhas !

Não sei se divindade alguma interveio no conflito instalado, o cabo saiu altas horas da taberna, já a noite ia subida, ouviram-se meia dúzia de tiros, e na manhã seguinte encontraram-no de borco, pistola na mão, um fio de sangue têmpora abaixo.

Segredou-se na vila que Deus escreve direito por linhas tortas, e constou nem um homem ter saído das tabernas para carregar o féretro até ao cemitério, tendo o Saul carpinteiro carregado o esquife na carroça e atirado a uma vala que, durante uma semana ninguém tapou…

               A vida triangulou assim a minha infância, um Deus tenebroso, um pai tirano, em negação mas agnóstico assumido, um irmão bom mas ausente. A puta da vida atirara com o meu mano para o seminário mas, como que escrito nas estrelas, deu-me, a mim, o benjamim de uma família de seis, um sólido ponto de referência pelo qual me guiar e que aos doze anos demandaria sem proveito.

Aprendi, aprendi que na cartografia existem pontos cardeais por onde nos guiarmos, ainda que somente latitude e longitude balizem com exactidão um rumo, um lugar.

Um novelo a existência...

Desenleemo-la …

Um flash repentinamente iluminando a sala penumbrosa, as legendas correndo na tela, o documentário em finish, o som que acelera repentinamente.

Sobressaltado emerjo do oceano de memórias em que naufragara, vaga erguida e acordando-me, qual fria água que o rosto cansado me refrescasse.

  

(1) Eu disse marcou, não disse traumatizou.

(2) Vergílio Ferreira – “ Manhã Submersa “

(2) Aquilino Ribeiro – “ Uma Luz ao Longe “

(3) - Prima Miquelina, vide texto 45 e 66 neste blogue :